sábado, 26 de dezembro de 2009

Aforismos (VI)

Pudor e dissimulação

Estes dois sentimentos são parecidos pelas suas manifestações exteriores; mas como é diferente a sua origem íntima! O pudor tem medo da mentira, a dissimulação da verdade. O pudor recata-se ante os olhares impuros ou superficiais, ante a falsa luz. A dissimulação recata-se ante a verdadeira luz. O pudor receia que se enganem sobre o seu segredo, a dissimulação receia que se veja com execessiva clareza o seu segredo. O primeiro teme ser julgado segundo as aparências, a segunda tem medo de ser julgada segundo a verdade. Vítor Hugo resume tudo isto neste belo verso: A inocência vela-se e a falta esconde-se...

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Caminha no teu amor, mas não esperes que a alegria te siga passo a passo. A felicidade não é a sombra do amor. Quando o amor avança, ela parece por vezes dormir---ou recuar. Mas quando o teu amor tiver atingindo o seu fim que é Deus, a alegria unir-se-á de novo a ti num bater de asas e não te abandonará jamais.

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A verdadeira fidelidade consiste em fazer renascer indefinidamente aquilo que nasceu uma vez --- esses pobres gérmens de eternidade postos por Deus no tempo, que a infidelidade rejeita e a falsa fidelidade mumifica. Só o nascimento tem encanto, dizem os amantes da mudança; mas quem nao é capaz de renascer não chegou nunca a nascer, (há neste mundo mais abortos que nascimentos). O gesto de colher a flor é tão virgem como o de lançar o grão --- e o que não sabe esperar a colheita nada soube também da alegria e do amor do semeador: limitou-se a mover as mãos e embriagou-se com o seu gesto; não semeou...

Fonte: "O que Deus uniu" - Editorial Aster - Collecção Éfeso



quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Psicossomatismo

Um padre americano contou-me recentemente a história seguinte: recebera a visita de dois adolescentes num estado de extrema agitação. Julgavam-se possessos do demônio e pediram-lhe para os exorcizar. Como nunca lhe tinham feito tal pedido, começou por manifestar algum ceticismo sobre o que os jovens afirmavam. Compreendeu tudo, quando eles lhe confessaram que tinham assistido, alguns dias antes, à projeção do filme de horror intitulado "O exorcista".

"Acabei --- contou-me ele --- por praticar sobre eles, com a maior solenidade possível, os ritos do exorcismo e eles foram-se embora livres da sua obsessão. Mas pergunto a mim próprio se não se tratava de um simples fenômeno de auto-sugestão..."

Sugestão ou não --- respondi-lhe --- acho que procedeu muito bem, porque era verdadeiramente do diabo que se tratava. Não, sem dúvida, de um caso em que o demônio possuia diretamente uma pessoa, mas sim do espírito do mal que sopra através do mundo e penetra nas almas através dos meios de comunicação social. Em suma, um demônio sociológico, adaptado à era das multidões...

Digamos que estes jovens que se julgavam possessos tinham "somatizado" a emoção violenta provocada por um espectáculo de terror. O que nos conduz a reflexões mais gerais sobre o fenômeno da projeção no corpo das perturbações da alma, ao qual um dos nossos grandes médicos atribuía recentemente a origem de pelo menos cinquenta por cento das doenças consideradas orgânicas: asma, eczema, úlcera gástrica, cardiopatia, etc. Daqui a necessidade de os médicos que se preocupam com a eficácia saberem tanto de psicologia como de fisiologia.

Admite-se, portanto, cada vez mais, sob a pressão crescente dos fatos, que a alma é senhora do corpo, que o plasma, se assim posso dizer, à sua imagem, uma vez que perturba o funcionamento do corpo em função do seu próprio desregramento.

Mas qual é então a causa da má vontade ou da suspeita que tão facilmente incide sobre o bem fundado da influência contrária --- a influência da alma sobre os mecanismos e as pulsões do corpo, a fim de os regular e de os orientar em função de um ideal moral ou religioso?

Uma imensa corrente de opinião, que tem origem no culto aviltante do prazer e da facilidade, tende a repelir, como contrárias à plenitude do ser humano e como causas de recalcamento e de frustração, todas as formas de ascese e de disciplina que o espírito impõe à carne. É neste sentido que alguns condenam, em nome da espontaneidade e da criatividade da criança, a parte de aprendizagem e de disciplina que a educação comporta e que identificam, em matéria sexual, o ideal de castidade com recalcamento...

"É lesar os direitos do corpo impor a castidade aos adolescentes" --- dizia-me uma educadora, embebida até á medula de liberalismo moral e, por outro lado, eminentemente favorável ao aborto e à pílula.

Eis como lhe respondi: "O corpo não tem direitos, mas funções. É à alma que pertence coordenar essas funções com vista a realizar um equilíbrio ótimo entre a vida animal, a vida espiritual e as exigências do meio social. Que isso implica uma parte de violência em relação às pulsões carnais, é algo a que dou o meu acordo sem receio. E também concordo que certas castidades mal integradas provocam recalcamentos. Mas o recurso ao aborto ou à pílula, que você preconiza, como contrapartida da liberdade sexual, não é também um atentado contra esses famosos "direitos" do corpo? É a carne que reclama a interrupção da gravidez ou o impedimento da fecundidade? Pelo contrário, ela só quer levar até ao fim o processo natural que vai da união conjugal ao nascimento. Não, essas intervenções mutilantes procedem de um frio cálculo do espírito, ávido de tirar do corpo o máximo de gozo, sem ter em consideração as consequências naturais do prazer. Nesse caso, intervenção por intervenção, prefiro a da moral sexual..."

Assim, como quer que se proceda, nunca se escapa ao domínio da alma sobre o corpo. Todo o problema está em saber qual o sentido em que esse domínio se exerce.

Mens sana in corpore sano (alma sã em corpo são) --- diziam os antigos. Sabemos demasiado bem que as doenças da alma se repercutem sobre o corpo; por isso, é preciso velar pela saúde da alma, a fim de que ela tenha, em sentido contrário, as mesmas repercussões --- por outras palavras, substituir o psicossomatismo do erro e do mal pelo da verdade e do bem.

Fonte: viriatos.blogspot.com
Artigo original em francês:
"Le psychosomatisme" - Revista "Itinéraires" (Billets - 22 octobre 1976)

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Aforismos (V)

A terra tanto pode encadear, como libertar...

Não separe o homem o que Deus uniu. Não confies amigo, nos idólatras que quebram e conspurcam a unidade. Não acredites nos que separam a alma da carne e caluniam o corpo. Nem tão pouco nos que separam a carne da alma e mofam da pureza das alturas. Ama como todo o teu coração e com toda a tua alma. Há coisas em ti, enamoradas de voluptuosidades mais intensas ou de vôos mais fáceis, que pretendem desfazer a unidade. Bem sei. A tua carne demasiado pesada, idealizará uma beatitude atascada, e o teu espírito, demasiado pronto, um vôo de sonho e de nuvem. Mas, que importa? Religiosamente, incansavelmente, segura-te, tem mão em ti. Defende bem a tua imortal e frágil unidade. Ainda que seja para saciar a tua fome (mesmo de justiça e de amor), ou para repousar da tua grande fadiga, não permitas que nenhuma parte do teu ser proceda e avance sozinho. Se for necessário, caminha mais devagar. Mas sempre todo, em corpo e alma. Separada do espírito, a carne corrompe-se; e o espírito, separado da carne, empalidece, como flor desenraizada. E reduz-se a um fantasma.

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Ser e ter

Contenta-te com ter pouco, mas procura ser muito. A amplitude do teu ser dilatará até as estrelas o humilde canteiro do teu jardim. Não tires ao dia, senão com prudente economia, as possibilidades que dormem em ti. Deixa, neste domínio, largas zonas virgens e inexploradas. Em vez de te apressares a possuir, limita-te algumas vezes, muitas vezes mesmo, à impressão razoável do que "podes". Prefere a tua fome viva, a uma saciedade amortecedora. Cultiva a calma na realização das tuas esperanças. Não vês como são raras, na terra, as felicidades que sobrelevam em pureza à esperança? Deixa de colher muitos dos frutos que se te oferecem. Lembra-te dos malefícios que neles se podem esconder, um dos quais é privar-te da tua fome e da tua alma. Reserva-te para o único bem digno de ti, que é, não a extinção, mas a expansão do teu desejo.

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Obediência e servidão

Não se foge à obediência, senão para cair na servidão. Afliges-te, vendo de que é que os homens são escravos? Se queres a chave deste "mistério de abjeção", procura ver a quem é que eles fogem de servir.

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O homem não escapa à autoridade das coisas do alto, que o sustentam, senão para cair na tirania das coisas de baixo, que o devoram.

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Aquele a quem a alegria facilmente se oferece, jamais conhecerá o gosto das alegrias profundas. É fácil blasfemar contra as provações e proclamar o direito do homem à felicidade. Mas, que seria o mundo, se nele o homem encontrasse a alegria e o repouso ao nível da sua decadência? Que seria a terra, se nela o homem pudesse cair, sem se moagoar? Um coração onde a dor não mordeu, jamais poderá respirar o ar puro das alturas, o ar puríssimo do céu.

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Olha como as criaturas fervilham e se agitam! Que querem? Que procuram? Dir-se-ia que vivem sob a tentação fatal de abortar, de falhar estupidamente, em cada gesto, em cada pensamento, em cada palavra, em cada intenção. Falta-lhes a força necessária para deixarem amadurecer, dentro de si, a dor, a soledade, e mesmo Deus. Sente-se que ambicionam os meios mais rápidos, mais próximos, mais imediatos, de se desembaraçarem de tudo, sejam os braços de uma mulher, seja uma vida fácil, sejam os vãos atrativos da glória ou do poder. Não querem dar à luz na dor. Resultado? Abortam numa dor ainda maior: a dor estéril e sem sentido. De fato, o aborto nunca foi um parto. E o fruto arrancado à força deixa nas entranhas uma chaga difícil e, até, muitas vezes, impossível de cicatrizar.

Fonte: "A escada de Jacob" - Editorial Aster - Colecção Éfeso

sábado, 19 de dezembro de 2009

Aforismos (IV - Risco e prudência)

O homem deve escolher em todos os domínios, não entre a segurança e o risco, mas sim entre um risco aberto, fecundo, carregado de promessas, e um risco estéril, sem compensações nem saída. Na verdade, porque não temos neste mundo nível estável, a recusa de subir aumenta as probabilidades de cair. Ao risco fecundo da vida e do amor, a falsa prudência substitui por toda a parte o risco estéril do egoísmo e da morte.

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A falsa prudência e o culto do risco aparecem, em profundidade, como dois ramos divergentes, saídos do mesmo tronco. Não só sucedem, mas coexistem nas mesmas almas, fazem parte do mesmo estado de espírito. Sempre os que se recusam aos riscos saudáveis e necessários, são a presa mais certa dos riscos vãos e doentios; e os que procuram o risco extraordinário, o risco do luxo, são os que mais desarmados se revelam e os mais covardes em face dos riscos normais da vida.

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Dilema inevitável: porque imagem da divindade, o homem foi feito, ou para subir até Deus, ou para macaquear a Deus. Se não quiser ser a sua imagem, como filho, será o seu símio, a sua caricatura.

O falso sábio e o falso herói estão ambos emparedados no fingimento caricatural que fazem da Divindade. O primeiro repele o risco, por não crer que o todo do homem reside fora do homem, sem compreender que vale a pena perder-se, para se aperfeiçoar. Macaqueia aquele que, em si mesmo, é tudo, quando recusa ser tudo o qeu, com sua graça deve ser. Mas o segundo, correndo riscos gratuitos e sem objeto, procede igualmente como se nada existisse fora de si. Está sedento de uma evasão indefinida, mas vive cativo da sua embriaguez e dos seus caprichos. Perde-se, mas não para lá do estremecimento da própria alma e da própria carne, o que equivale a dizer que se perde sem nada dar. Em vez de oferecer a alma a um ser amado, "tenta-a", como diz Rimbaud, até à morte, no esforço absurdo de extrair dela um absoluto impossível. No jogo do nada, arrisca tudo, porque inconscientemente se julga Deus e cuida poder criar para sim um mundo novo, em troca do mundo perdido. É assim que ele mente ao ser do homem, ou seja a esta pobre natureza tão limitada e tão relativa, suspensa de fins que não criou e que não tem o direito de perder arbitrariamente.

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Em nenhum caso o risco deve ser indeterminado, por isso mesmo que em nenhum caso o risco é criador. Se o navio se arrisca ao naufrágio, é sempre em função do porto, já virtualmente atingido pelo pensamento e pelo desejo. O porto já existe. Não é o navio que o cria, quando se expõe ao risco de naufragar. Sempre e em toda a parte, na ordem da natureza, como na ordem da graça, o risco e a segurança correspondem-se.

Fonte: "A escada de Jacob" - Editorial Aster - Colleção Éfeso

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

A utopia

"Todo o bem real projeta algum mal: só um bem imaginário não projeta mal". Este pensamento de Simone Weil exprime uma verdade profunda. A linguagem corrente traduz a mesma ideia dizendo que "não há luz sem sombra".

Podemos sonhar e esperar uma felicidade absoluta ou uma perfeição sem mistura de imperfeições, mas não podemos alcançá-las. A vida real é sempre uma mistura de bens e de males e a melhor coisa tem sempre o seu lado negativo. Quem parte de férias para um pais meridional sonha com um céu sempre sem nuvens, com um mar tranquilo onde os banhos são uma delícia, com alimentos novos e saborosos, etc... Sem dúvida, encontrará tudo isso, mas experimentará também (e estas coisas não estavam previstas no seu programa de férias) os engarrafamentos de trânsito, dias de mau tempo e talvez mesmo algumas indigestões, devidas à cozinha exótica...

Os namorados pensam no casamento como numa lua-de-mel permanente e sem fim e pensam nos futuros filhos como numa alegre ninhada de pequenos seres encantadores e afetuosos. Na realidade, algumas cores escuras virão misturar-se a estas visões cor-de-rosa. Nem todos os casamentos são felizes e, mesmo nos melhores, há sempre uma parte de decepção e de provações. E quanto aos filhos trarão aos pais, juntamente com alegrias, um cortejo de preocupações e de dificuldades... O mesmo acontece com todas as outras circunstâncias da vida.

Por que razão há esta distância entre o que se deseja e o que se consegue na realidade? Muito simplesmente, porque os nossos desejos são indefinidos e as nossas capacidades de realização são muito limitadas.

Qualquer que seja a orientação que dermos à nossa vida, ela comportará sempre uma mistura de bem e de mal.

Por isso, a sabedoria consiste em escolher não só o maior bem, mas também o menor mal. E acontece, não raro, que a solução menos má ainda é a melhor. Schopenhauer dizia que os reis que começavam as suas proclamações por estas palavras: "Nós pela graça de Deus", estariam mais próximos da verdade, se escrevessem: "Nós, de dois males o menor". Com efeito, toda a autoridade comporta abusos e injustiças, mas o governo mais imperfeito ainda é preferível à anarquia.

A vida terrena é um caminho imperfeito para a perfeição que nos espera na eternidade. Este caminho torna-se rapidamente impraticável, se exigirmos dele a perfeição, que só será alcançada no termo. É neste sentido que lorde Acton dizia que "a sociedade se torna um inferno, na medida em que se quer fazer dela um paraíso". Se, ao pensar em casar, um homem sonha com uma esposa ideal e com filhos absolutamente sem defeitos, mais lhe vale ficar solteiro, para não ser um mau marido e um mau pai. E se, na vida profissional, uma pessoa não tolera nenhum fracasso nas suas empresas nem nenhum defeito nos seus colaboradores, todos os seus esforços ficarão estéreis. A experiência prova que não há homem mais insuportável que aquele que não sabe suportar nada.

São Tomás Moro descreveu numa obra célebre um Estado onde reinaria a justiça ideal e a felicidade absoluta. Mas situou esse Estado na ilha da Utopia, o que em grego significa o pais que não existe em parte nenhuma. Enquanto a nossa viagem terrena não chegar ao fim, devemos, portanto, tender para a perfeição, mas nunca pretender consegui-la.

Fonte: viriatos.blogspot.com

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Aforismos (III)

Fidelidade e disponibilidade

A incapacidade de criar novas afeições aparece aos olhos dos nossos velhos amigos como um penhor de fidelidade. Antes se deveriam afligir com isso, porque é o sinal de um esgotamento afetivo que não poupa a nossa dedicação por eles. O ser impotente para criar novos laços nem sequer está em estado de manter vivas as antigas afeições, e a sua "fidelidade" assemelha-se muito à do esqueleto pelo túmulo ou à da pedra pelo lugar que ocupa. Assim, uma terra muito esgotada para que novos grãos nela possam germinar, também não tem força para alimentar as plantas que nela se encontram. Quer se trate de coisas do espírito, quer das coisas do coração, a grande ilusão dos idólatras do passado está em ter desconhecido que o nosso poder de conservação é rigorosamente proporcionado ao nosso poder de renovação e de criação. Também a fidelidade não é mais do que sabedoria e virtude de embalsamador.

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Progresso

Ultrapassei isso, dizes-me. Repara em ti mesmo. Não se abandona aquilo que verdadeiramente se ultrapassa. O ponto donde se vem, liga-se àquele para onde se vai, como numa paisagem o primeiro plano está ligado ao horizonte, e o olhar abarca um e outro no mesmo abraço. É preciso que a tua jornada de amanhã germine na tua jornada de ontem; na verdade, é preciso, não que avances pela estrada de modo a que cada passo gere o esquecimento do passo precedente, mas a que o caminho entre em ti. Assim, o teu horizonte alargar-se-á sem que tenhas de abandonar nada nem de trair nada. Tudo o que tiveres ultrapassado estará presente e vivo em ti.

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Equilíbrio e equilibrismo

Esse homem tem sempre medo de se comprometer, de ir longe demais, o menor esforço fá-lo estremecer, não tem maior preocupação que a de manter em todas as coisas o "justo termo". Será isso equilíbrio? De modo nenhum: isso é equilibrismo. O homem equilibrado abraça e harmoniza em si as tendências opostas (a vontade e a paixão, a prudência e a audácia, a lucidez e o entusiasmo, etc.); é como uma montanha cujo equilíbrio implica a existência de duas vertentes. E essa amplidão de base permite-lhe, precisamente, como a montanha cujo cimo se perde audaciosamente no céu, comprometer-se a fundo, descurar os meios termos e as preocupações; pode ir muito longe e muito algo sem perigo para o seu domínio interior; é suficientemente forte e rico para ser equilibradamente excessivo. O equilibrista, pelo contrário, está isolado da vida e toda a sua habilidade se reduz a manobrar sabiamente para ficar de pé no meio do turbilhão de forças adversas que o agitam e que não pode dominar. O primeiro, evita a queda aderindo totalmente à vida, o segundo, mantendo-se exterior a tudo. Ambos se escapam às correntes perigosas: um, porque comunga com a própria fonte do rio, o outro porque sabe "conduzir a sua barca".

Fonte: "O pão de cada dia" - Editorial Aster - Colecção Éfeso

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Sur la tradition

On me reproche---ou on me loue---d'être traditionaliste. Je réponds: qu'est-ce qu'une tradition? Le mot vient du latin "tradere": livrer, transmettre. Dans ce sens très large, personne n'échappe à la tradition: nous sommes tous les héritiers d'un immense capital de doctrines, de moeurs et d'usages qui est la base et l'aliment de toute civilisation. Nous pouvons répudier une partie de cet héritage mais ce refus lui-même s'inscrit à la suite d'un courant issu du même héritage. Car il y a une tradition révolutionnaire aussi ancienne que la tradition conservatrice: le mythe de l'anticulture par exemple dont on nous rebat les oreilles traduit, non la négation pure et simple de toute culture, mais le conflit entre deux conceptions de la culture---phénomène qui se reproduit à chaque tournant de l'histoire. Jamais d'innovation absolue. Au jeune poète qui lui disait: "je ne veux rien savoir de ce qu'on a dit avant moi", Goethe répondit: "si je comprends bien, vous vous suffisez pour être un imbécile." L'animal seul n'a pas de passé, mais dans un autre sens il n'est que passé puisqu'il répète sans fin les gestes de ses prédécesseurs.

Il ne s'agit donc pas d'accueillir ou de repousser la tradition, mais de choisir entre les traditions. Quels sont les critères de discernement?

La vendetta fut longtemps en Corse une solide tradition. De même, en Chine, la "réduction" des pieds des petites filles. Ou encore dans certaines régions, la couvade, curieux usage qui consistait en ceci que l'époux se mettait au lit aussitôt après l'accouchement de sa femme et recevait les félicitations et les soins normalement destinés à la maman.

Si traditionalisme que je sois, la disparition de ces étranges ou cruelles contumes ne me cause aucun chagrin.

Par contre, je me sens invinciblement attaché aux traditions locales concernant la cuisine, le vêtement, les métiers, les arts, les rites sociaux et religieux, etc. qui sont le fruit d'une expérience et d'une sagesse séculaires et qui donnent au visage du monde habité cette inépuisable diversité sans laquelle l'unité n'est qu'uniformité et abstraction.

De telles traditions sont le terrain nourricier où s'enracine la plante humaine et dont l'érosion laisse celle-ci sans couler et sans vigueur.

Mais l'homme---Platon le disait déjà---est une plante enracinée à la fois dans la terre et dans le ciel. Au-dessus de toutes les traditions de temps et de lieux, il y a une sagesse immuable et éternelle, commune aux êtres supérieurs de tous les temps et de tous les lieux et qui, transmise de génération en génération, nous révèle simultanément les limites et la misère de l'homme et son inépuisable soif d'une perfection qui est au-delà de l'humain.

Cet héritage sacré de lucidité et d'espérance que le monde moderne, oscillant entre l'utopie et le désepoir, ignore ou repousse, je m'y accroche de tout ce qui en moi refuse le néant et le mensonge. C'est l'étoile fixe dont le reflet dans les eaux du temps devient bouée de sauvetage...

Parlera-t-on d'immobilisme? Bien sûr la tradition a ses dangers. Il y a la tradition-source et la tradition-gel, la seconde en général succédant à la première dès que se refroidit l'inspiration originelle et que la lettre étouffe l'esprit: on voit alors se figer les rites en formalismes, la vertu en moralisme, l'art en académisme, etc. Ce qui incline à renier la source alors qu'il suffit de briser la glace. Le vrai traditionaliste n'est pas conservateur: il sait trop bien que la stérilisation est le procédé commun à toutes les fabrications de conserves. La tradition n'exclut pas la liberté créatrice: elle la nourrit de toute l'expérience du passé et de l'éternel et elle l'oriente dans le sens d'un perfectionnement. Depuis quand l'étoile polaire entrave-t-elle la marche d'un voyageur.

Vaut-il mieux céder à la fièvre d'un changement sans but et sans garde-fous? "Mutantur, non in melius, sed in aliud" (on ne cherche pas ce qui est meilleur, mais ce qui est nouveau), disait le vieux Sénèque. La succession des modes, le culte des "anti", la réformite aiguë (voir par exemple la ronde effrenée des lois sur l'ensignement...) vérifient scandaleusement ce diagnostic. En fait l'agitation n'est que le revers de l'immobilisme: la feuille morte qui voltige à tous les vents n'a aucune supériorité sur la pierre inerté.

Un autre reproche: l'attachement stérilisant au passé. Je répondrai que nous ne pouvons plus rien pour le passé et que celui-ci ne m'intéresse qu'en fonction du présent et du futur. Quand je vois pourrir les racines d'un arbre, je pense surtout aux fleurs et aux fruits qui avorteront demain faute de sève. C'est l'avertissement que donnait déjà Chateaubriand aux novateurs écervelés de son temps: "Gardons-nous d'ébrandler les colonnes du temple: on peut abattre sur soi l'avenir."

Fonte: Revista "Itinéraires" (Billets, 11 juin 1976)

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Os paraísos artificiais

A morte de duas adolescentes, vítimas da droga --- uma por injeção mal doseada, a outra indiretamente, por suicídio --- suscitaram recentemente abundantes comentários em todos os jornais franceses. Há um fato que atrai principalmente a atenção: o uso dos estupefacientes começa a fazer sentir as suas destruições nas camadas modestas da sociedade, que pareciam até há pouco imunes a este flagelo.

Os jovens são os mais atingidos, o que ainda põe mais sombras negras no quadro. Um jornal publicou os resultados de um inquérito realizado entre os colegas das vítimas. À pergunta: "Porque é que te drogas?" foram dadas, entre outras, estas respostas: "Não temos gosto em nada, tudo nos deixa indiferentes" e (são palavras de uma jovem de 18 anos): "No meu estado normal, vejo as coisas tal como são; uma vez drogada, vejo-as como quereria que elas fossem". A infeliz jovem, sem o saber, repetiu, quase palavra por palavra, a célebre frase de Bossuet: "A pior desordem do espírito consiste em ver as coisas, não como elas são, mas como se quereria que elas fossem". E, no entanto, Bossuet falava da influência das paixões entregues a si mesmas e não de uma desordem artificialmente provocada e mantida...

Quem se droga, fá-lo por sentir aborrecimento. Mas porque sente assim aborrecimento? Tenho debaixo dos olhos um artigo que diz substancialmente o seguinte: Como é que os jovens, hoje, podem e ousam aborrecer-se? Nunca os homens dispuseram de um tão grande leque de possibilidades: maior liberdade de escolha da profissão, graças à generalização e à facilidade dos estudos e, no domínio das distrações, leituras, espectáculos, televisão, esportes, viagens, etc. E isto diz-se particularmente das moças, anteriormente limitadas ao piano, aos bordados, ao "tricot" ou à cozinha, com raras saídas sempre acompanhadas, as quais gozam hoje de tanta liberdade como os rapazes. Depois, numa evocação da encantadora cidadezinha mediterrânica de Bandol, onde passava férias o grupo de jovens drogados a que pertencia uma das vítimas, o autor do artigo conclui: Será que não há mais nada para fazer do que drogar-se, nesta bela região onde tudo concorre para a felicidade dos veraneantes --- a doçura do clima, a beleza das paisagens, as oportunidades de praticar todos os esportes terrestres e náuticos, etc.?

Daqui o paradoxo: era quando os homens tinham mais razões objetivas para se aborrecerem que eles se acomodavam melhor a uma existência aparentemente insípida e é quando eles têm todas as possibilidades de se distraírem que se aborrecem mais. A explicação é simples. O aborrecimento é como o enjôo. O que faz o enjôo não é a falta de apetite é a saciedade. O aborrecimento, como o enjôo, é uma toxina segregada pela abundância mal assimilada.

A pior miséria do homem não é não ter nada, é nada desejar. Então, é levado a procurar um remédio para a falta de apetite, não no jejum que lhe devolveria o gosto dos verdadeiros alimentos, mas em excitantes artificiais cujo efeito se atenua rapidamente, porque, não correspondendo a nenhuma necessidade natural, agravam em profundidade o mal que aliviam à superfície o que exige o emprego de meios ainda mais corruptos e mais nocivos. Assim se realiza a "escalada" da falsa evasão até ao recurso à droga, termo normal desta fuga para o irreal, onde o homem encontra um último refúgio contra o aborrecimento na dissolução da sua própria personalidade. Se, na forte expressão do catecismo, a condenação eterna consiste em perder a sua alma, os paraísos artificiais são já a prefiguração do inferno.

Demasiado bem-estar, demasiadas facilidades, demasiados tempos-livres são --- dizem os pessimistas --- a explicação desta decadência. Se fosse verdadeiramente assim, isto é, se o esforço das gerações precedentes que forjaram o instrumento prodigioso da prosperidade material tivesse de levar forçosamente a este legado envenenado; se o que se chama justiça e promoção sociais, ideal democrático e civilização de massas consistisse em difundir em todas as camadas da sociedade vícios anteriormente reservados aos ricos e aos ociosos; se o homem só tivesse a possibilidade de escolher entre os tormentos da miséria e o aviltamento pelo aborrecimento então, justificar-se-iam em absoluto as perspectivas mais sombrias do futuro da nossa civilização.

Não penso que tenhamos demasiado bem-estar e demasiados tempos livres. O que falta a muitos é o bom modo de utilização desse bem-estar e desses tempos livres. A civilização moderna cultiva todos os nossos desejos, mas negligencia ensinar-nos o bom uso dos bens que desejamos. Ela apresenta-nos conjuntamente o necessário e o supérfluo, o útil e o prejudicial, o melhor e o pior, deixando-nos a responsabilidade da escolha. Trata-se de digerir esta abundância e de merecer esta liberdade. Ora, toda a boa digestão implica duas condições: em primeiro lugar, o discernimento, que consiste em saber escolher o que se come, e em segundo lugar a moderação, que consiste em não comer demasiado. O apetite cego produz o enjôo --- depois do qual a doença e o médico não tardarão a impor-nos um regime incomparavelmente mais severo...

Aqui reside, com efeito, o fundo do problema: se não soubermos aliar a abundância exterior com a disciplina interior, a própria abundância nos será subtraída, porque a prosperidade econômica só pode subsistir e crescer com o trabalho e com os bons costumes. E quanto à disciplina, seremos reconduzidos a ela pela força exterior da tirania, consequência invariável da desordem e da libertinagem, a qual será exercida por implacáveis médicos do corpo social, senão por cirurgiões sem escrúpulos, que não hesitarão em nos amputar deste precioso órgão de que fizemos mau uso: a liberdade.

Fonte: viriatos.blogspot.com

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Aforismos (II)

Ser e ter

Drama do ser separado. Não tem compenetração orgânica com coisa alguma, tudo lhe é exterior, tudo lhe é uma carga. Aqui as noções de exterioridade e do fardo entrecruzam-se: um fardo é-nos sempre exterior. Tudo o que levamos em nós, tudo o que somos (quer dizer, tudo o que amamos de verdade) não poderá ser carga para nós, ou pelo menos é uma carga alada que nos impele. O corpo não sente o peso dum órgão e nada nos é mais leve que essa enorme massa da atmosfera que nos esmagaria se não estivesse misturada com a fonte da nossa vida. O mesmo quanto a um ser ou a um dever a que estamos religados vitalmente... Mas tudo se torna carga para aquele a quem tudo é estranho, até a sua própria vida. Ser carga para si próprio; não há expressão mais adequada para designar o homem a quem a recusa do amor tornou exterior à sua própria essência.

Inúmeras locuções correntes traduzem esta oposição entre a interioridade do amor e a exterioridade do fardo. Dizemos dum ser amado: levo-o no meu coração. Assim não lhe pesa. Mas daquele que não amamos, e cuja presença nos pesa, dizemos, levo-o às costas.

* * *

Não é a lei do menor esforço que nos guia, é a lei do menor valor. A nossa energia é inversamente proporcional à pureza dos motivos que nos levam a agir. Seríamos todos uns heróis se puséssemos ao serviço da verdade e do bem a força que diariamente despendemos na procura do mal e da mentira, se fizéssemos por ser, o que fazemos, tão facilmente, tão espontaneamente, por parecer.

Fonte: "O pão de cada dia" - Editorial Aster - Colecção Éfeso

domingo, 6 de dezembro de 2009

Aforismos

"O jugo que se escolhe, ainda é liberdade" (Lamartine). --- De fato, a liberdade é precisamente isso. Longe de se confundir com uma impossível exigência de autonomia absoluta, a liberdade, no ser criado, só se pode conceber como faculdade de escolher o próprio jugo e, em última instância, de escolher entre o senhor que nos engrandece, e o senhor que nos destrói. De fato, a mesma natureza da liberdade implica a ameaça da escravatura. A possibilidade de se abrir a tudo, pela aceitação, tem como contrapartida a possibilidade de, por mera recusa, se fechar a tudo. Entre as realidades criadas, só a liberdade possui este exorbitante poder de se destruir a si mesma. É como uma sala com duas saídas. Uma abre para Deus; a outra, para o nada, --- e é necessário sair! Em última análise, o homem não tem a escolha senão entre o amor e o suicídio. Ou a doação de si mesmo, ou a morte. Por isso, considerada nas suas possibilidades negativas, a liberdade é, por excelência, a faculdade do suicídio...

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Vazio interior

A despeito de todas as aparências em contrário, o homem gasta-se na medida em que o ritmo acelerado da corrida se substitui nele ao ritmo lento do crescimento. Ora, o que por toda a parte se verifica é que, no nosso tempo, o progresso consiste mais em correr, na linha horizontal, do que em crescer, para o alto.

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Progresso?

Desde há um século para cá, o mundo evolui a passos de gigante. Tudo se precipita: o vento do "progresso" fustiga-nos a cara. Mau sintoma: a aceleração contínua é mais própria das quedas do que das ascensões.

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Sabedoria medieval e pensamento moderno

Na Idade Média, não se conheciam todos os segredos da fechadura humana e cósmica, mas possuía-se a chave, que é Deus. A partir de Descartes, tem-se explorado afincadamente a fechadura, que uns e outros vão tentando descrever de modo mais ou menos minucioso. Mas o pior é que... perderam a chave! O mundo e o homem tornaram-se, para o pensamento moderno, fechaduras sem chave. De resto, hoje, o pensamento, no seu conjunto, nem já se preocupa com a natureza ou com a existência da chave. A única preocupação, diante de uma porta fechada, consiste no modo, não de a abrir, mas de a examinar!

Fonte: "A escada de Jacob" - Editorial Aster - Colleção Éfeso

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Alma gêmea

"O meu coração mo tinha dito: toda a alma é irmã de uma alma...o seu destino, cedo ou tarde, é encontrarem-se" (Lamartine)

Mito estúpido e venenoso, o da alma irmã criada especialmente para cada um de nós e que é suficiente encontrar para realizar na terra o paraíso do amor. Sem dúvida, um mínimo de harmonia pré-estabelecida é indispensável à eclosão de um grande amor, mas este mínimo de consonância entre duas almas pode ser realizado a priori por centenas de mulheres em relação a um homem e por centenas de homens em relação a uma mulher. É preciso toda a candura da juventude e uma completa ignorância da vida para desconhecer esta verdade. É preciso também muito orgulho: julgar-se único e solitário como um deus a quem só um outro deus, igualmente único e solitário, pode compreender e amar.

Um só Tristão para uma só Isolda: divinização do amor humano que, como todas as idolatrias, conduz em linha reta à destruição do ídolo. D. João é filho de Tristão e parece-se tremendamente com o seu pai. Ambos se encontram cativos do mito do amante único e perfeito, preparado de antemão pelo destino: um imagina possuí-lo, o outro procura-o. Ambos crêem no absoluto, no paraíso do amor, mas num paraíso gratuito e terreno, criado pelo mero encontro e pela simples presença.

Na realidade a harmonia única e insubstituível entre duas almas, não é mais, na hora do encontro, que um começo indeterminado no meio de uma ganga de ilusão. É da comunhão quotidiana, das alegrias, das dores, dos esforços e sacrifícios partilhados que ela tirará depois a sua forma precisa e imutável. "A alma irmã", "a metade de nós mesmos", não é dada a priori, mas a posteriori: são o nosso amor e a nossa fidelidade que a criam. Ela poderia ter sido outra, mas, depois da prova do amor, ela só podia ter sido essa. A esposa única merece-se. A verdeira monogamia, isto é, a fusão de dois destinos, encontra-se mais no termo do que na origem do amor.

Fonte: "O que Deus uniu" - Editorial Aster - Colecção Éfeso

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

L'élitisme renversé

On m'interroge sur la promotion sociale. Je réponds qu'elle doit consister dans la sélection des meilleurs et je me fais aussitôt accuser "d'élistisme".

Le terme est récent, et il implique une nuance péjorative: esprit et orgueil de caste, mépris des humbles, etc.

Revenons au sens des mots. L'élite (de: choisi, élu) désigne, d'après le dictionnaire, "ce qu'il y a de meilleur" dans les choses et dans les êtres. Ainsi les grands crus de Bordeaux font partie de l'élite des vins, les fameux "verts" de Saint-Etienne, représentent l'élite des joueurs de football, etc.

Cela admis, n'est-il pas normal de préférer et de privilégier le meilleur? Dois-je pour éviter l'élitisme, trouver autant de saveur à la volaille aux hormones qu'u poulet de ferme? Et n'est-il pas juste que, dans la société, les places de choix reviennent à ceux qui se distinguent par leurs talents et par leur activité et rendent ainsi les meilleurs services à la communauté? Les exames scolaires, puis la qualité du travail et la compétition professionnelle n'opèrent-ils pas dans ce sens? Et comme il ne peut pas exister de société sans hiérarchie, n'est-il pas souhaitable que cette hiérarchie soit fondée sur la sélection et la promotion des meilleurs? A la limite, sarait-ce témoigner d'un élitisme suspect que de refuser un poste de professeur à un illetré ou le permis de conduire à un aveugle?

Ce qui m'inquiète aujourd'hui, c'est la croissance diffuse d'un nouvel élitisme, d'un élitisme à rebours, issu d'une false notion de l'égalité et d'une sentimentalité dévoyée, et qui se manisfeste par la préference accordée aux inadaptés, aux inutiles, aux parasites, voire aux malfaiteurs.

Epinglons quelques exemples de ce renversement des valeurs.

Je connais des pédagogues qui déclarent les cancres plus intéressants que les élèves doués et qui récusent énergiquement les vieux critères de sélection, tels que notations, classements, examens, etc.

La Sécurité Sociale,---dont je ne conteste pas le principe humanitaire, mais le mode de fonctionnement où fleurissent l'anonymat et l'irresponsabilité,---ne favorise-t-elle pas trop souvent les paresseux et les resquilleurs au détriment des travailleurs qui, fidèles à leur tâche, n'éprouvent pas de besoin de monnayer le moindre bobo en repos immérité et en soins superflus?

L'inflation érode chaque jour le revenu et les économies des producteurs. Mais elle permet aux spéculateurs de réaliser des gains énormes sans faire oeuvre utile, par le seul jeu des signes monétaires.

Les malfaiteurs, les criminels inspirent plus de commisération que leurs victimes, la société étant déclarée à priori la grande, sinon l'unique coupable. J'ai parlé naguère d'une prison new-look installée en Corse où, la résidence forcée mise à part, les détenus jouissent d'un confort et d'un luxe (plage privée, plusieurs centaines d'hectares de parc, etc.) dont tant d'honnêtes gens n'oseraient même pas rêver...

Faut-il parler aussi de l'attention et de la publicité privilégiées qu'on accorde aux marginaux de toute espèce: hippies, prostituées, aberrants sexuels, etc? Au succès des publications et des spectacles qui abondent dans ce sens? Comme si, par une étrange perversion du goût, la société était deveneu plus friande de ce qui l'empoisonne que de ce qui la nourrit...

Je clos ces exemples sur cette savoureuse anecdote. Dans une université étrangère dont je tais le nom, deux professeurs de compétence à peu près égale sont proposés au choix des autorités pour l'obtention d'une chaire. L'un est un homme parfaitement équilibré, l'autre un grand névrosé déjà titulaire, outre les diplômes exigés, de plusieurs dépressions qui ont compromis son enseignement précédent. On donne la chaire au second avec cette idée que sa fragile nature ne supporterait pas l'échec tandis que le premier est assez solidement structuré pour l'assumer sans dommage. Compassion envers un malheureux, je veux bien. Mais cruelle inconscience à l'égard de son collègue, éliminé en raison même de sa supériorité, et des centaines d'élèves qui subiront plus tard les conséquences de ce choix inhumain par excès d´humanité.

Ainsi croule l'élite fondée sur la valeur sous la pousée d'une contre-élite: celle de l'écume et du rebut. Encore quelques pas dans cette voie, et il suffira d'être supérieur ou seulement normal pour récolter l'indifférence, sinon la suspicion et la défaveur...

Qu'on m'entende bien: je ne nie pas que les plus faibles doivent être, non seulement protégés contre les abus des plus forts, mais encore aidés par ces derniers: j'affirme seulement qu'ils ne doivent pas être préférés et choyés comme tels. Que l'incapacité et, à plus forte raison, le parasitisme et la malfaisance ne doivent pas donner droit à des traitements de faveur. Qu'on soulage les déshérités, qu'on réeduque les anormaux, mais que leurs lacunes ou leurs tares ne deviennent pas des moyens de chantage et des objets de promotion.

Je sais aussi que l'équilibre est difficile à garder, même dans les sociétés les plus saines, entre les droits du plus fort (et je prends ce dernier mot dans son sens le plus haut: force de l'intelligence et de la volonté, puissance d'action, etc.) et le devoir de secourir les plus faibles et les dévoyés---entre la loi de la jungle qu élimine impitoyablement les inadaptés et un humanitarisme déliquescent qui consacre et encourage l'impéritie et le vice. Il n'en reste pas moins---et c'est un des grands dangers de notre libéralisme dit "avancé"---que si ce déplacement de l'élite du haut vers le bas continue à se généraliser, c'est la société tout entière qui risque de s'écrouler sous le poids de cette promotion à rebours des inutiles et des parasites.

Fonte: Revista "Itinéraires" (Billets , 17 septembre 1976)


terça-feira, 24 de novembro de 2009

A cada dia basta a sua pena

O homem é o único ser vivo capaz de pensar e de prever o futuro. Este privilégio permite conceber e realizar projetos por meio dos quais --- ao contrário do animal que vive no dia-a-dia sob a influência imediata dos seus instintos --- o homem pode orientar e construir o seu próprio destino. A previsão é o motor do progresso. Mas esta preciosa faculdade é também fonte de um número incalculável de ilusões e de sofrimentos. Com efeito, muitos homens vivem de tal modo no futuro que se esquecem de saborear as alegrias ou de cumprir os deveres da hora presente. E isto, quer porque esperam do futuro uma felicidade ideal, que não é compatível com as condições da vida terrena, quer porque adiam para amanhã o cuidado de se corrigirem dos seus defeitos ou de tomarem certas decisões cuja urgência se faz sentir já hoje. Esquecem que o futuro é apenas um presente diferido e que, se hoje são incapazes de ser felizes e de realizar certos esforços, amanhã encontrar-se-ão com as mesmas limitações e as mesmas dificuldades, de tal modo que, deslocando as suas esperanças de amanhã em amanhã, acabarão por morrer sem nunca ter vivido. "O inferno está cheio de boas intenções" --- diz um velho ditado... A mesma obsessão do futuro pode apresentar-se também sob a forma do medo e da angústia. Quantos homens agravam os seus males reais com a imaginação dos males possíveis e sofrem de antemão acontecimentos que talvez nunca venham a ocorrer! Estes terrores são geralmente tão ilusórios quanto as falsas esperanças, porque os males que nos atingem não são quase nunca aqueles que tínhamos previsto. Conheci um homem que vivia na obsessão do cancro; o menor mal-estar parecia-lhe um sintoma da terrível doença; via-se já destruído e condenado pela doença; por fim, acabou por morrer num acidente de automóvel, no qual nunca tinha pensado. Mas, entretanto, tinha estragado a sua vida na expectativa de males imaginários. Responder-me-ão que há casos em que os males que se receiam não são imaginários e um homem que sofra, por exemplo, de uma doença grave, ou que defronte sérias dificuldades financeiras, tem razões muito legítimas para recear pelo futuro. Direi que tal fato é mais uma razão para não acrescentar á dor presente --- que já é demasiado acabrunhante --- o peso suplementar da dor futura. Vejamos o caso de um doente. O que o acabrunha e desanima é menos o seu sofrimento atual do que a imagem que cria para si mesmo do conjunto de males que talvez venha a sofrer e de perigos de que se sente ameaçado. "Que mais terei eu ainda para sofrer? Como vou sair disto tudo?" --- pergunta a si mesmo. E sente-se esmagado por essa carga de provações futuras, que por agora só existem no seu espírito. Precisamos de aprender a aceitar as provações exatamente como elas nos são dadas, isto é a retalho, aos poucos e no dia-a-dia. "Qualquer que seja o teu sofrimento --- dizia Marco Aurélio --- podes sempre suportá-lo até ao minuto seguinte: ora, a vida é apenas uma sucessão de minutos". Também já foi dito que, se pusessem diante de um homem o conjunto dos alimentos que ele virá a consumir até ao fim dos seus dias (várias toneladas de pão, de carne, etc...), ele perderia imediatamente o apetite. E contudo, dia após dia, sem pensar nisso, o homem virá realmente a comer toda essa quantidade de alimentos... "Não vos inquieteis a pensar no amanhã; a cada dia basta a sua pena" --- diz-nos o Evangelho. O que nós temos de fazer não é sonhar o futuro, mas construí-lo mediante uma fidelidade sem quebra ao cumprimento das tarefas e dos deveres da hora presente.

Fonte: viriatos.blogspot.com

sábado, 21 de novembro de 2009

Palavras de Gustave Thibon sobre sua obra.


Dois princípios comandam o meu pensamento: o repúdio dos ídolos e o amor da unidade. E estes dois princípios reduzem-se afinal a um, porque o ídolo é a parte arvorado em todo, e unicamente desfazendo os ídolos se poderá refazer a unidade. Toda a realidade me é cara e sagrada, com a condição de que não perturbe, ao ultrapassar os seus limites, a harmonia universal: um limite amado e respeitado é também um vínculo. Em face de cada ídolo, eu defendo o bem relativo, mas real, que o ídolo esmaga sob um mentiroso peso de absoluto.

Mas se, segundo a expressão de Chesterton, "a máquina redonda perdeu a cabeça", se o homem está reduzido a correr atrás dos pedaços dispersos de si mesmo, é porque nos esquecemos de que este mundo não tem em si o seu princípio de unidade. O primeiro efeito do esquecimento do transcendente é a ruína do temporal. Esta lei verifica-se hoje com uma desumana evidência nos nossos corpos pisados e nas nossas almas descentradas. Os ídolos dão as suas provas negativas numa cadência sempre acelerada que evoca as leis da queda dos corpos: um após outro se afundam, quer numa explosão de terror apocalíptico, quer no pântano estéril da lassidão e do desgosto. E deste fracasso de todas as mentiras, deste desabar de todos os paraísos artificiais, depreende-se a clara necessidade do retorno ao verdadeiro Deus, criador e salvador do mundo, o único que é capaz de reunir os elementos que a loucura humana dispersou. Quem pode salvar-nos do caos, a não ser aquele que nos tirou do nada?

É muito fácil (e esta é a tendência dos cristãos imperfeitos que somos) substituir Jesus Cristo por um ídolo humano repleto dos nossos erros e das nossas paixões. "É preciso vigiar o nível a que se põe o infinito, escrevia magnificamente Simone Weil; se o colocamos ao nível que só ao infinito convém, pouco importa o nome que lhe dêmos". Adorar um falso Deus sob o nome do verdadeiro tem tanto valor como divinizar a matéria, o sexo, a raça ou o Estado.

Consoante o nível da alma que ela exprime, a palavra humana oscila entre dois extremos que são o flatus vocis e o verbum vitae. Apenas o segundo tem para mim interesse.

"A ponto de expirar, tento ofuscar", escrevia o grande Corneille ao envelhecer. Suponho que sou capaz disso, ofuscar não me seduz. Só acredito nas palavras que são também alimento.

Não tenho qualquer pretensão de novidade, de originalidade de pensamento, no sentido que o mundo moderno atribiu a essas palavras. Só queria ensinar evidências. Talvez isto se chame, em linguagem mais chã, forçar portas abertas. Mas, não ensinará a experiência que as verdades mais evidentes são também as mais desconhecidas e que os homens se encarniçam em forçar fechaduras imaginárias em vez de entrar pelas portas da salvação que Deus abre diante dos seus passos? E o próprio Deus, não será uma porta aberta cuja soleira poucos atravessam?

De resto, a evidência mais comum, se penetrar até ao fundo da alma, converte-se em revelação inesgotável. Santos houve que puderam viver indefinidamente duma só frase do Evangelho. Aquilo que pertence à categoria de distracção, de espectáculo, carece de ser incessantemente renovado; o que é próprio da vida permance imutável. E se porventura perdemos o gosto pelas verdades eternas, é que, para nós, o conhecimento deixou de ser a porta da vida. Corremos duma idéia para outra porque não assimilamos nada: não vamos ver duas vezes o mesmo filme, mas alimentamo-nos todos os dias com o mesmo pão.

O meu testemunho, enquanto pessoal, conta portanto pouco: só interessa o que tenha podido passar através de mim de luz universal. Pudesse eu não ter deixado a marca dos meus limites nas verdades que nasceram antes de mim e que não morrerão comigo. Não aspiro a iluminar os homens com a minha lanterna: a minha única ambição é ajudá-los a melhor contemplar o sol.

Fonte: "O pão de cada dia" - Editorial Aster - Colecção Éfeso

Virtude e estabilidade

Com muita frequência, as virtudes mais vivas, as mais chamejantes, são também as mais frágeis e as mais ameaçadas. As virtudes mortas, pelo contrário, (honestidade burguesa, farisaísmo, etc.) são muito mais sólidas: não há perigo nenhum (ou esperança nenhuma!) de que essa pessoa respeitável se desvie alguma vez do caminho direito... Porquê? É que a virtude viva é uma ascensão: tem, pois, o ardor e o magnetismo da vida, mas há nela também instabilidade, porque toda a ascensão comporta um perigo de deslize e de queda. O que se incrusta no flanco de um monte e aí estabelece morada não corre o risco de cair: a sua virtude imóvel tem a segurança dos túmulos. Pode, pois, dizer-se, sem paradoxo, que uma virtude não exposta a perder-se não vale a pena ser possuída. A segurança absoluta contra o mal retira o bem a sua vitalidade e os seus encantos...

No entando, por cima do risco vivo de quem avança e da segurança morta do que julga ter chegado existe uma virtude simultanamente viva e estável: a virtude suprema de quem faz em Deus a sua morada. Só o santo realiza este prodígio de nos oferecer com a estabilidade absoluta, o estremecimento da vida, da juventude e do imprevisto.

Fonte: "O pão de cada dia" - Editorial Aster - Colecção Éfeso

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Les mains et l'esprit

Les Anciens dépréciaient le travail manuel, sans doute parce qu'ils le confiaient généralement aux esclaves. Sénèque écrit quelque part que la sagesse ne s'abaisse pas jusqu'à diriger l'oeuvre des mains. Il aurait pu penser que les innombrables ouvriers qui, sous la direction de Phidias, avaient édifié ce prodige de beauté qu'est le Parthénon, avaient rendu à l'Esprit un plus haut témoignage que l'essaim des sophistes oisifs qui bourdonnait à la même époque dans les rues d'Athènes.

On exalte aujourd'hui ce même travail matériel, mais trop souvent hélas! non pour sa fécondité intrinsèque, mais à des fins idéologiques et politiques: flatter des travailleurs est encore une façon de les exploiter...

Essayons d'y voir clair. J'ai l'humble privilège d'être un travailleur de l'esprit qui a longtemps travaillé de ses mains. Et je récuse la dichotomie entre ces deux formes de travail. Car, si l'on peut penser sans bouger les mains, on ne peut pas user de la main sans penser, sauf pour les travaux dégradés en automatismes.

Mais cette dégradation est aussi fréquente et plus nocive dans le domaine de la pensée et de la parole. Combien de pseudo-intellectuels programmés par telle ou telle idéologie débitent les idées et les mots suivant un processus aussi mécanique et prévisible que le geste du tisserand poussant sa navette! Avec cette différence aggravante que le manuel, même sans penser, fait oeuvre utile pour le prochain tandis que l'intellectuel, s'il ne pense pas ou s'il pense mal, exerce une influence stérilisante sur la pensée des autres. Faut-il évoquer le laminage des cerveaux par l'information déformée et déformante et les propagandes? On nous sature les oreilles du mythe de la créativité alors qu'on rogne jusqu'au néant le sens critique, condition indispensable d'une création intellectuelle authentique.

Toute la dignité de l'homme est dans la pensée, disait Pascal. Mais le pires menaces qui pèsent sur l'homme sont aussi la pensée. Et c'est là qu'éclate---en fait, sinon en droit---la supériorité du travail des mains sur les tâches de l'esprit.

Le travail des mains nous offre l'antidote contre toutes les possibilités de légèreté et d'illusion dont s'accompagne l'exercice désincarné de l'intelligence. Tout est possible et tout est permis dans se domaine; on peut se tromper soi-même et tromper les autres; les sanctions de l'erreur et de la malfaçon sont imprécises et lointaines; aussi voit-on proliférer "la race bavarde des savants d'illusion'' dont parlait déjà Platon. Rien de tel pour le labeur matériel: l'oeuvre y juge l'ouvrier sans délai et sans appel.

Et comme il exclut l'illusion, le travail des mains laisse aussi très peu de marge à la tentation de la facilité, du laisser-aller. On peut toujours se tromper, voire se contredire, dans le domaine intellectuel et moral; l'immatérialité y a pour rançon une plasticité indéfinie, ce qui permet impunément tous les défis à l'ordre des choses et au bon sens. Mais la matière, avec ses sanctions brutales et "irréversibles'', nous enseigne impitoyablement le sérieux dans l'action. Un instant d'inattention ou d'élaboration de quelque chimère n'entraînent aucun dommage immédiat pour le philosophe ou le politicien en chambre (aussi s'en donnent-ils à coeur-joie...), mais la même distraction ou la même pousée de créativité aberrante chez la cuisinière ou l'agriculteur se traduisent par le plat immangeable ou la récolte perdue. Et ce n'est pas une pirouette intellectuelle ou morale qui réparera le dommage...

C'est la grande leçon que les mains donnent à l'esprit. Tout serait sauvé si les hommes de pensée apprenaient à obéir librement aux lois du monde invisible avec cette attention rigoureuse et ce sens des responsabilités que les lois du monde physique imposent aux travailleurs manuels...

Fonte: Revista "Itinéraires" (Billets, 18 juin 1976)

Ars contemnendi

Acreditamos com facilidade na bondade dos homens e, quando eles nos desiludem, acreditamos com igual facilidade na sua profunda maldade: e isto é ainda muito lisongeiro para eles. Durante muito tempo, recusamo-nos a considerá-los tal como são, quer dizer, quanto à maioria, como seres insignificantes, meras superfícies, que reemitem todos os ruídos e refletem todos os raios. Acreditamos instintivamente na existência duma profundidade sob essas superfícies; pretendemos a todo o custo que as suas palavras e os seus atos possuam uma causa interior.

No fundo, o amor e o ódio são os nossos únicos sentimentos espontâneos: a educação do desprezo só se opera lentamente, tardiamente em nós. Assim, cremos ingenuamente na afeição "sincera" do amigo que nos exprime a sua simpatia, mas se alguma vez tomamos conhecimento de que o referido amigo fez a nosso respeito comentários desagradáveis, passamos a considerar estes últimos como a expressão autêntica da sua alma, e todos os seus interiores testemunhos de amizade nos aparecem como manobras hipócritas.

Na realidade, é a mesma necessidade universal de agradar, inerente a toda a impotência, a mesma incapacidade de se afirmar, de se opôr, de dominar as influências, a mesma ausência de opinião e de paixões pessoais, em resumo, o mesmo fenômeno de adaptação ao meio que dita as suas lisonjas na nossa presença, e a sua maledicência num círculo em que essas maledicências causam satisfação! Esse homem é igualmente sincero nos dois casos, se se entende por sinceridade a ausência de premeditação e de fraude, a espontaneidade de adaptação dos espelhos e dos cataventos; e igualmente hipócrita, se por hipocrisia se entende a falta de qualquer sentimento certo, profundo e durável.

O camaleão é cinzento enquanto caminha na areia; se passa por uma árvore a sua coloração torna-se verde; não é mais sincero nem mais hipócrita num sítio ou noutro: não deixa de ser nunca um camaleão. Os homens verdadeiramente maldosos são tão raros como os homens verdadeiramente bons, mas há muitos impotentes que imitam, de acordo com a direção do vento que os agita, tanto o bem como o mal.

Fonte: "O pão de cada dia" - Editorial Aster - Colecção Éfeso

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Indiferença e desprendimento

A indiferença favorece o desprendimento. No entanto, é-lhe ainda mais oposta que o apego. Entre a indiferença e o desapego existe a mesma distância que entre a taça esvaziada e a taça que transborda. Três estados das nossas relações com o próximo:

A indiferença: para mim, não existes.
O apego: existes, mas essa existência depende das nossas recíprocas relações: existes na medida em que te possuo.
O desprendimento: tu existes para mim absolutamente, para além de tudo o que me possas dar: adoro em ti um reflexo da divindade que nada me pode arrebatar; não tenho necessidade de te possuir para que existas para mim.

A indiferença é a pior das desgraças porque suprime a possibilidade do desprendimento, porque arrebata a Deus a sua presa. Há uma situação pior que a do idólatra: a do insensibilizado que não tem já ídolos para antepor ou converter em Deus.

Fonte: "O pão de cada dia" - Editorial Aster - Colecção Éfeso

sábado, 14 de novembro de 2009

Realidade social e miragem coletivista (V - Final)

O PROGRESSISMO CONTRA O PROGRESSO

Esse mito de um progreso sem referência à essência nem à existência, sem submissão matafísica nem empírica (e, o que é pior, contradito pela experiência) compromete as condições de um verdadeiro progresso. Porque, da perspectiva progressista, não é o homem que faz a história, é a história que faz o homem. O homem não tem escolha diante do progresso (o slogan "não se detém o progresso" é muito significativo); ele é empurrado por uma força irresistível contra a qual ele nada pode.

Eu me recordo de uma reunião na qual eu tinha emitido algumas dúvidas sobre o radioso futuro que um orador prometia à humanidade. Esse profeta me respondeu: "o que quer que o senhor faça, não mudará nada disso: está já inscrito na história". --- Eu pensei imediatamente nas inscrições gravadas sobre os túmulos. Inscrito, isto é: invariável, irrevogável, que já aconteceu de alguma maneira porque não pode acontecer de outra forma---a imobilidade do passado projetada sobre o futuro, a história conjugada no futuro anterior. Assim desaparece a contingência e com ela a liberdade e, por via de consequência, a melhor chance de um progresso real.

É fácil desmontar o mecanismo pelo qual o messianismo progressista desemboca de fato no fatalismo histórico e na religião do sucesso. Se nós nos persuadimos de que o futuro deve trazer-nos necessariamente o melhor, é preciso proclamar em seguida, para não desmerecer essa fé, que tudo o que acontece é o melhor. Se não há critérios do verdadeiro e do bem acima da história, é o sucesso temporal que decide do verdadeiro e do bem. O fato se identifica ao valor: o fascimo tinha razão na medida em que ele triunfava e o marxismo tem razão hoje na mesma medida. O homem não é mais construtor da história: ele é o seu prisioneiro.

Em face dos malogros e desgraças de seu ídolo, os adoradores do progresso reagem por um ato de fé e de esperança cega. Eles fazem uma transposição das virtudes teologais. Pedem-nos, efetivamente, que creiamos num "deus oculto" (Leon Bloy falava da "falência aparente da redenção"...) e que "esperemos contra a esperança". Eles fazem a mesma coisa em relação ao progresso: tudo vai mal hoje, mas vamos um pouco mais longe no mal e nós encontraremos o bem, pois o progresso não pode mentir. O progresso é concebido como uma espécie de sacramento que regenera indefinidamente a humanidade ex opere operato.

Mas as realidades temporais não fazem parte das coisas que não se podem verificar e nas quais se devam crer, mas daquelas que se podem e que se devem verificar. Elas não suscitam virtudes teologais, mas virtudes morais. Pode-se conceder indefinidamente um crédito a Deus que parece falhar, porque "os pensamentos de Deus não são nossos pensamentos e os desígnios de Deus não são nossos desígnios, masa quem seria tão tolo para abrir um crédito a um comerciante que jamais cessou de acumular bancarrotas?

As virtudes teologais, arrancadas do céu e salpicadas sobre a terra, para cá trazem frutos envenenados. O resultado negativo de tantas revoluções está aí para demonstrá-lo. "A sociedade", dizia Lord Acton, "torna-se um inferno na medida em que se quer fazer dela um paraíso". E tanto mais que a fé cega e incondicional numa humanidade declarada a priori indefinidamente perfectível dispensa, com pouco dispêndio de lucidez, esforços e sacrifícios sem os quais nenhum aperfeiçoamento real é possível.

Concluiremos dizendo que nosso dever essencial é de saber opor, quando for preciso e tanto quanto seja preciso, o senso do homem ao pretenso sentido da história. Ou antes, é o senso do homem (quero dizer, o conhecimento de sua natureza e de seu fim) que nos deve mostrar a direção que é preciso imprimir à história. Porque não há fatalidade histórica. O tempo não é senão um caminho para a eternidade, e este caminho não é traçado com antecedência: é a nós que compete criá-lo cada dia, pelo esforço de nossa liberdade e nossa obediência à graça, através dos obstáculos das contingências, do erro e do pecado. Mas sendo o caminho erigido em fim, cessa de existir como caminho e se torna impasse ou precipício.

Uma frase de Péguy nos servirá de conclusão: "o cristianismo não é uma religião do progresso, é uma religião da salvação". --- A idolatria do progresso compromete a salvação, porque ela desconhece o abismo irredutível que separa a marcha do tempo da entrada na eternidade. Mas, procurando antes de tudo a salvação e velando por acréscimo sobre as condições terrestres dessa salvação cuja fonte não está senão em Deus (a missão temporal do cristão consiste em aplainar e balisar a pista que conduz para o céu), trabalha-se também para a edificação de um progresso social, limitado e realativo como tudo o que pertence ao homem e ao tempo, mas autêntico---esperando o cumprimento de nosso destino na Cidade de Deus que está além do social, do tempo e da morte.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Realidade social e miragem coletivista (IV)

O COLETIVISMO CONTRA O SOCIAL

O coletivismo não reúne os homens senão para melhor os isolar. Ele os separa uns dos outros, na medida em que os amontoa uns sobre os outros. Assim, os grãos de areia no deserto formam uma imensa massa homogênea, mas os elementos que constituem essa massa não tem entre eles nenhum vínculo interno: é a própria imagem da Cidade Totalitária em que a solidão aumenta em função da promiscuidade.

A maqueta da Cidade Futura, nós a temos já nos grandes conjuntos anônimos que crescem como cogumelos ao redor de nossas cidades e dos quais transpira, para fora como para dentro, a lepra da uniformidade e do tédio; nos rebanhos humanos em que o "condutor" substitui o pastor; nesse desenraizamento geral que solta os indivíduos, como folhas mortas, ao vento da moda e da opinião; nessa fabricação em cadeia de consciências teleguiadas que são cevadas de abstrações e de quimeras ao invés de serem nutridas de realidades.

Falam-nos de bom grado da "dimensão planetária" da humanidade de hoje. Mas quem não vê que onde essa nova dimensão (que, alias, não é nova: todos os santos conheceram essa paixão da humanidade) não tem por fundamento e por caução um apego vivido ao próximo imediato e uma experiência de responsabilidade pessoal, ela não pode ser senão ilusão e engano? É muito bonito ser cidadão do mundo, mas é preciso começar por não ser apátrida. Saint-Exupery refere-se a este dialogo entre um homem apegado à sua terra e um desenraizado: "Você está partindo? --- Sim. --- Para onde? --- Para Melbourne. --- Como você estará longe! --- Longe de onde?" Com efeito, não há distâncias para o desenraizado. Ele não está longe de nada. Mas, em contrapartida, ele não está ligado a nada: a palavra próximo não tem o menor sentido para ele.

Nessa ordem, o uso imoderado das facilidades de comunicação --- quer se trate de deslocamento no espaço ou de informação --- arrisca comprometer nossa capacidade de comunhão. O próximo se distância à medida que o longínquo se aproxima. E ainda não se aproxima senão em aparência: por palavras e por imagens. O que pensar, por exemplo, desse cidadão inconsciente e organizado (mecanizado caberia melhor) que se apaixona pela guerra do Vietnã e que ignora os problemas e talvez mesmo a existência de seu vizinho de andar --- que ignora até o seu próprio problema, pois não se da conta de que não entende nada das questões acerca das quais é pedido que tome partido. E esse homem, arrancado de seu próximo e de si mesmo, vive em sonho a duas mil léguas.

Diante dessa ameaça --- já em parte realizada --- do formigueiro futuro, Teilhard afirma com um otimismo intrépido: "não há formigueiro se as formigas aprendem a se amar". Mas como poderiam elas aprender a se amar se a própria construção do formigueiro implica na eliminação das condições de amor, na erosão do terreno social de que ele precisa germinar? É aqui que se aplica a fundo a parábola da semente e do solo: o grão divino aborta sobre um solo humano muito empobrecido.

Hugo, num clarão de lucidez profética, coloca estas palavras na boca de não sei que Demos informe, construtor da Cidade coletivista e igualitária: "eu sou tudo, o inimigo misterioso de Tudo". --- O número, túmulo da unidade: é aí, com efeito, que desemboca a miragem coletivista. Uma cidade em que une seus habitantes enquanto cifras e não enquanto pessoas. Que faz a soma e não a síntese. E que, em última análise, se edifica sobre as ruínas do homem real. Um organismo --- se isso se pode dizer! --- em que a prótese substituiu os membros: no limite, os ídolos absorvendo seus adoradores – uma sociedade sem homens...

Continua ...

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

O medo e a inveja

O medo e a inveja são dois sentimentos muito humanos, demasiado humanos, ai de nós!, de que ninguém está totalmente isento. Que homem, perscrutando o fundo da sua consciência, poderá dizer sem mentir que nunca teve medo e que nunca sentiu uma sombra de despeito, diante da superioridade ou do êxito do próximo? Mas estes defeitos têm isto de particular: quase ninguém ousa reconhecê-los diante dos outros nem mesmo confessá-los no interior de si mesmo. Apelo aqui para a experiência de cada um.

Todos os dias ouvimos pessoas confessarem-se sem dificuldade deste ou daquele comportamento condenado pela moral. Por exemplo, da propensão para a cólera ("eu cá não deixo ninguém pôr-me o pé sobre o pescoço") ou para a gula (as histórias de "comilões a toda a prova" abundam nas conversas) ou ainda para os pecados da carne. E não só confessam esses excessos, como até chegam a glorificar-se deles. A este propósito, conta-se o caso de um marselhês a quem o sacerdote perguntou, na confissão: "nunca enganou a sua mulher?", tendo ele respondido: -"Senhor prior, eu vim aqui acusar-me e não gabar-me!"

Mas já alguém ouviu um homem declarar: sou um covarde e encolho-me ao menor perigo? Ou ainda: sou um invejoso e as vantagens do próximo são intoleráveis para mim? Porque acontece assim? Muito simplesmente porque os outros defeitos podem ser atribuídos a um excesso de vitalidade mal dirigido, ao passo que o medo e a inveja são índice não só de fraqueza moral, mas também de inferioridade de natureza. E disto ninguém gosta de confessar-se...

Assim, para escapar a esta confissão de inferioridade, demasiado dolorosa para o seu amor-próprio, o covarde e o invejoso reagem disfarçando estes sentimentos miseráveis sob formas menos humilhantes, isto é, segundo a análise cruel de Nietzsche, dando-lhes a cor de virtude e de ideal.

O medo reveste, por exemplo, a máscara do pacifismo. O covarde mostra-se cheio de consideração e de compreensão para o adversário que o enfrenta ameaçador, faz-lhe todas as concessões possíveis, em nome da paz internacional ou social---pronto a esmagá-lo, quando a sorte o abandonar. Conheço um dos nossos célebres intelectuais franceses (cujo nome me abstenho de citar) que, aterrorizado pela invasão alemã, em 1940, fez o elogio da ordem nazi e, não menos cheio de medo, em 1945, ante a ameaça comunista, converteu-se em fervoroso apologista do entendimento com a Rússia, por qualquer preço. O medo tinha mudado de objeto, mas não de natureza. Quanto à inveja, ela manifesta-se em política sob o véu do igualitarismo, que confunde com a vontade de justiça.

A reação do invejoso diante de tudo o que lhe é superior resume-se nisto: "independentemente do que sejas, não vales mais do que eu e, se tens mais do que eu ou se pareces ser mais do que eu, é por um favor imerecido da nossa má organização social, que há-de ser varrida amanhã pela justiça revolucionária".

É inútil sublinhar a importância deste fator dissolvente nas nossas pseudodemocracias... Estes passadores de moeda-falsa intelectual e moral são, uma vez mais, a prova da miséria do homem. Miséria da fraqueza e do egoísmo, intolerável para o orgulho, que o homem dissimula e justifica sob as aparências lisonjeiras da mentira. Os nossos vícios mais perigosos são os que disfarçamos de virtudes.

Fonte: viriatos.blogspot.com

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Realidade social e miragem coletivista (III)

A MIRAGEM COLETIVISTA

De onde vem então o mito vivaz de uma sociedade ideal da qual o mal seria eliminado pelo relaxamento progressivo, depois pela desaparição de toda tensão entre o indivíduo e o grupo?

Creio que na base dessa utopia, contradita pela experiência milenar, encontra-se uma espécie de sobrevivência degradada e desviada da esperança religiosa. Esta cai, por assim dizer, do céu sobre a terra, da eternidade no tempo. E desse modo ela transforma o meio em fim, o caminho em objetivo. Procurar o absoluto e a perfeição ao nível da vida terrestre conduz fatalmente ao progressismo. Nesta óptica, o futuro se torna o álibi do presente. Se este chora, os amanhãs cantarão. Eu penso naquelas lojas onde está escrito: "o que você não vê nas vitrinas, peça lá dentro". Esta inscrição pode ser transposta assim na visão progressista do mundo: "o que você não encontra no presente (e, com efeito, ainda que se arregalem os olhos, não se encontrará nele nada que responda à nossa necessidade de perfeição), o futuro lhe trará".

Mas porque a miragem progressita se alia quase sempre com a miragem coletivista? Primeiramente, porque o paraíso sobre a terra não é concebível sem uma harmonia social perfeita. Em seguida, porque a fé na ascensão infinita da sociedade para a perfeição dispensa o indivíduo de todo esforço de purificação pessoal. Solução fácil, que atende admiravelmente ao egoismo e à preguiça. Nós embarcamos todos num elevador infalível: para que se esforçar para subir por si próprio? A fé coletivista diminui a responsabilidade pessoal com todos os seus riscos. "O social", dizia Simone Weil, "é o álibi da caridade".

Dai resulta o escorregamento para o totalitarismo social, que é a caricatura da onipresença e da onipotência divinas. Teilhard de Chardin afirma sem hesitar que o coletivismo é "personalizante", o que significa que a tensão entre as exigências do indivíduo e as pressões da sociedade irá se relaxando cada vez mais e que os totalitarismos recentes e presentes são os intrumentos dessa libertação e dessa harmonia.

Eis, aliás, algumas citações de Teilhard, tomadas do excelente estudo de Louis Salleron acaba de dedicar ao assunto. Teilhard escrevia por volta de 1936 a propósito do fascismo: "O fascismo está aberto ao futuro. Sua ambição é de englobar vastos conjuntos no seu império. Sobre o domínio que ele quer cobrir, suas construções são mais satisfatórias do que qualquer outra, nas condições que nós reconhecemos como fundamentais à cidade do futuro... O fascismo representa uma maqueta muito bem sucedida do mundo de amanhã". E mais tarde, a respeito do comunismo: "tomai um marxista e um cristão, ambos convencidos de sua doutrina particular; mas ambos animados radicalmente por uma mesma fé no homem... e eles terminarão, apesar do conflito de fórmulas, por se reencontrar no mesmo climax".

Fé no homem. Mas qual homem? Um homem despojado de sua natureza e reduzido a um só dos seus atributos, o mais pobre de todos: o movimento, a mudança. Essa fé no homem se dirige a um ser indeterminado, desconjuntado, concebido somente como a sede de um dever perpétuo declarado a priori benéfico. Identificação do novo e do melhor...

"Qualquer coisa", diz-nos Teilhard, "se passa na estrutura geral da consciência humana. É uma nova espécie de vida que começa, é um futuro que será essencialmente diferente do estado presente". Nada mais: nenhuma referência a uma ordem de valores decorrente de uma visão da essência ou de uma experiência da existência; basta caminhar para estar no caminho reto; mais do que isso, a marcha e o fim se confundem.

E quando Teilhard nos diz, para apoiar sua apologia do coletivismo, que a evolução é ao mesmo tempo e solidariamente unificação e complexificação, pedimos permissão para refletir sobre este último termo. É evidente que a complexidade e a unidade caminham juntas na medida em que haja uma elevação na escala dos seres: nos dois extremos, nós temos o organismo monocelular e o homem. Mas isso só é verdade enquanto existe uma possibilidade de síntese biológica ou espiritual dos elementos associados. O que não é absolutamente o caso da coletivização da humanidade. Aqui, não é de complexidade que se trata, mas de complicação. E esta é simultaneamente a caricatura da complexidade orgânica e o pior inimigo da unidade. Porque a complexidade vem da natureza e a complicação vem do homem.

A Cidade totalitária que se elabora ao redor de nós oferece-nos, efetivamente, um duplo espetáculo: de um lado, uma tendência ao nivelamento geral, que apaga as verdadeiras diferenças entre os homens e consequentemente a complexidade natural; e, de outro, uma complicação cada vez maior na administração da Cidade e nas condições de existência de seus habitantes. Todos os homens estão em vias de se reunir como carneiros de um mesmo rebanho e nada é mais inextricavelmente emaranhado do que as leis e os regulamentos que regem suas relações. Tecnocracia, burocracia, papelada---isso não tem nada a ver com a relação orgânica complexidade-unidade. E isso se parece muito pouco com aquele processo de "amorisação" (impregnação de amor) de que fala Teilhard.

Continua ...

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Aforismo

Tu choras pelo que te falta. Não sabes, porém, que o que mais te falta, não é o que tu desejas, mas o que tu possuis? Porque tu fazes mau uso dele, e o mau uso das coisas é a pior das privações. A quem falta mais alimento reconfortador: àquele que tem fome ou àquele que vomita? Quem está mais privado de amor: a virgem que espera o amante que ela não conhece ainda, ou o devasso que enche de podridão tudo o que toca com os lábios? Qual está mais longe do verdadeiro Deus: o ateu revoltado pelo vácuo aparente do céu, ou o devoto que comprime a sua fé num coração do tamanho de um amuleto?--- Antes de gemer sobre a pobreza, pensa no uso que tu fazes da riqueza, e reconhecerás que, quanto pior é este uso, mais sede tens de outra coisa, para fazer dela um uso ainda pior, com o nada por horizonte. Enfim, o homem capaz de fazer um uso perfeito de tudo, ainda que nada tenha, nada lhe falta, porque Deus está nele e ele possui invisivelmente todos os bens na sua origem. Reciprocamente, o homem incapaz de sentir a centelha divina esparsa em todas as coisas, nada tem, ainda mesmo que possua tudo.


Fonte: "O olhar que se esquiva à luz" - Livraria Figueirinhas - Porto, 1957

domingo, 8 de novembro de 2009

Realidade social e miragem coletivista (II)

AMBIGUIDADE SOCIAL

Mas Vinet acrescenta: "pode-se naufragar no oceano da sociedade como no oceano de nosso globo e não há necessidade de perguntar em qual dos dois o naufrágio é mais frequente."

Nós tocamos aqui no problema da idolatria da sociedade, da absorção do homem pelo meio em que ele se situa.

E é ai que se evidência a ambiguidade do vínculo social: de um lado, frenando os apetites do eu individual, ele limita as devastações do egoísmo e do pecado; de outro, transpondo o eu para o "nós" (espírito de profissão, de casta, de classe, nacionalismo exclusivista e agressivo, fanatismo social ou religioso, etc.), ele reproduz, amplia e justifica o que o eu tem de pior. A história nos mostra que os mais sombrios instintos do indivíduo são ao mesmo tempo desencadeados e absolvidos quando são colocados a serviço do ídolo social. Um Robespierre, por exemplo, era um homem honesto que, se tivesse ficado na vida privada, não teria feito mal a ninguém: chefe político, ele sacrifica, sem o menor incômodo de consciência, milhares de franceses ao mito da revolução e da liberdade.

Assim o contágio social pode ser fator de expansão e de atrofia para a alma. É um lugar comum dos moralistas denunciar as caricaturas de virtude cujos critérios são apenas exteriores e sociais: farisaismo, moralismo, culto da respeitabilidade, arrivismo sob a máscara de devotamento ao bem público, etc. A casca se torna mais dura e espessa as expensas da seiva.

Desde que tomamos consciência dessa ambiguidade, nós nos colocamos a questão seguinte: qual é a melhor (ou a menos pior) forma de sociedade, isto é: aquela que melhor corresponde à natureza do homem e que o aproxima mais de seu fim divino?

Para responder, é preciso primeiro constatar que toda forma de sociedade comporta dois elementos: a seiva e a casca ou, se se preferir, a fonte e o canal: de um lado, o clima vivo, orgânico da Cidade, meio e veiculo dos valores que alimentam o ser interior (costumes, tradições, artes, religião, etc.), e de outro, o aparelho, o enquadramento legal da Cidade---por outras palavras, a lei natural, suporte da lei divina, e a lei escrita.

Aqui se impõe uma observação fundamental. As leis naturais, porque emanam do fundo imutável das coisas (o qual permite, na superfície, uma grande liberdade de movimento), são ao mesmo tempo permanentes no seu princípio e muito flexíveis nas suas aplicações: no limite, a obediência absoluta a Deus se confunde com a "santa liberdade dos filhos de Deus"(parere Deos liberta est, dizia Sêneca). As leis escritas, ao contrário, são ao mesmo tempo muito rígidas (elas não levam em consideração a diversidade dos indivíduos) e muito instáveis e cambiantes: basta, por exemplo, uma mudança de regime político para que o aparelho das leis e regulamentos seja modificado completamente. Elas fazem pouco da liberdade individual por sua uniformidade e a desorientam pela rapidez de suas mutações.

Constitui lei natural, por exemplo, que os homens, para realizar suas melhores possibilidades, devem viver num certo clima de segurança. Mas essa lei é muito elástica e os elementos desse clima podem variar ao infinito segundo as épocas, os lugares e os costumes. Ao contrário, os sistemas de segurança elaborados e impostos pelos poderes públicos formam uma rede de uma só vez muito rígida e muito complicada (por isso, frequentemente opressiva), mas ao mesmo tempo suscetível de modificações indefinidas.

Assim também para a família, realidade elementar, e a legislação familiar, o alcoolismo, vício contrário à lei natural, e os regulamentos contra o alcoolismo, etc.

Resulta disso que a melhor forma de sociedade é aquela onde o segundo desses elementos se situa no prolongamento do primeiro, onde a lei escrita vem apoiar e codificar a lei não escrita que emana, não somente da natureza universal do homem, mas ainda do gênio particular de tal ou qual nação. Sem nada idealizar (porque sempre existe uma distância e uma tensão entre esses dois polos da realidade social), o direito romano se inscrevia na linha do gênio do povo romano, a constituição helvética corresponde ao desejo íntimo dos habitantes da Confederação, a democracia e o direito consuetudinário britânicos foram elaborados em função do caráter anglo-saxão, etc. Aqui o direito escrito aparece como a rede protetora da lei natural.

Inversamente, uma sociedade degenera na medida em que o segundo polo (o da lei escrita) contraria ou absorve o primeiro---quando a pele abafa a seiva. "O que são as boas leis sem os bons costumes?", dizia Cícero. E Victor Hugo: "Na França, há dez mil leis e regulamentos entre nós e a liberdade". Neste caso, é o juridicismo contra o direito e a inadequação de todas as leis que são estranhas aos costumes ou simplesmente estão muito adiante dos costumes. Poder-se-iam invocar aqui sistemas de previdência social cujo bom funcionamento exigiria um grau de maturidade moral que o povo, no seu conjunto, está longe de ter atingido; o drama dos povos recentemente libertados da tutela colonial, certas leis contra o alcoolismo ou a prostituição e, mais geralmente, todos os ensaios de reforma que, por não estarem adaptados ao estado dos costumes, não fazem senão agravar os males que pretendem curar.

Resumamos. As melhores formas de sociedade são aquelas cujas estruturas comportam o máximo de vínculos vivos e interiores. Por outras palavras, aquelas em que a coletividade se organiza sob uma dupla influência: primeiro, aquela da necessidade elementar de polaridade biológica (a família, o grupo humano arejado em que cada um permanece ele mesmo em sua relação com o próximo, o trabalho, o pertencer comum a um solo, a um clima, a uma tradição, em resumo a Cidade em que o passado é o suporte e o alimento do presente e em que a hierarquia das funções se enraiza na diversidade das vocações); em seguida, aquela influência de um apelo espiritual representado por uma cultura e uma arte que traduzem o espírito de um povo, por uma religião ao mesmo tempo universal e encarnada. Uma tal sociedade prolonga, coroa, corrige se necessário, mas sem aboli-la, a diversidade humana; ela constitui uma síntese da qual cada elemento conserva e desenvolve sua integridade, sem justaposição nem mistura; a identidade do fim aí concorre para a expansão da diferença original que cada indivíduo traz em si.

Apressamo-nos a acrescentar que nenhuma formação social atende plenamente a esse ideal. Todas as sociedades estão mais ou menos em equilíbrio instável, todas apresentam imperfeições e fraturas (opressão, parasitismo, farisaismo, etc.) mas, sem realizar o bem absoluto, impossível de atingir aqui em baixo neste mundo, é já uma grande vantagem encarnar o menor dos males. Schopenhauer dizia que os reis que inscreviam no começo de seus ordenamentos: "Nós, pela graça de Deus" teriam estado mais perto da verdade dizendo: "Nós, dos males o menos, decretamos que..." Enfim, como os indivíduos, todas as formas de sociedade tornam-se caducas e as novas formas que as substituem, mesmo se (o que está longe de ser sempre o caso) estas constituem um progresso positivo em relação às precedentes, continuam fatalmente misturadas ao bem e ao mal.

Um só exemplo. O parasitismo social existia, no Antigo Regime, sob a forma do senhor ocioso e do cortesão e no no século XIX sob a figura do rendeiro não menos ocioso. Hoje, esses tipos humanos praticamente desapareceram, mas o número de parasitas em relação ao conjunto da população certamente não diminuiu. Citemos de memória os funcionários inúteis, os desfrutantes dos "trusts" ou do Estado e os inúmeros "trabalhadores" que exercem atividades supérfluas ou nocivas. Todas eles são parasitas, no sentido de que eles não proporcionam à coletividade o equivalente aos bens reais que eles consomem. E não creio que esse mal possa jamais ser totalmente eliminado.

Continua ...

Il y a savoir et savoir

Talleyrand étant ministre, un de ses amis lui recommanda un jeune homme qui sollicitait un emploi dans la diplomatie. "Prenez-le sans crainte, Monseigneur, lui écrivait-il, vous en serez satisfait: ce jeune homme sait tout.'' Talleyrand reçut le postulant, s'entretint une heure avec lui, puis écrivit à son ami: "Vous aviez raison. Ce jeune homme sait tout; malheureusement, il ne sait que cela.''

Ces mots sont plus actuels que jamais: ils nous montrent l'abîme qui sépare le théoricien désincarné de l'homme d'action et d'expérience. Le savoir puisé dans le livres représente bien peu de chose s'il n'est pas sans cesse complété, vérifié ou corrigé par celui qu'on tire du contact personnel avec la réalité. La langue allemande a deux mots bien differents pour désigner ces deux aspects du savoir: wissen et erleben. L'un concerne la connaissance purement intellectuelle et l'autre la connaissance vécue.

Regardons autour de nous et nous trouverons sans peine des exemples qui nous feront saisir cette différence.

Telle jeune fille, qui aura suivi des cours ménagers et saura par coeur les meilleures recettes de cuisine, se montrera incapable de confectionner un plat vraiment savoureux, tandis que sa mère, qui n'a jamais ouvert un livre de cuisine, préparera sans réflechir des mets succulents.

J'ai connu un jeune érudit qui avait rédigé une thèse remarquable sur l'Amour à travers les âges. Or, ce jeune homme, qui n'ignorait rien de toutes les subtilités de la litérature amoureuse, était l'être le plus embarrassé, le plus décontenancé qu'on puisse rêver, le plus incapable d'amorcer "un brin de cour'' dès qu'il se trouvait en présence d'une jeune fille. Il savait tout et ne pouvait rien.

J'ai connu aussi un éminent professeur qui avait écrit un gros ouvrage sur l'education et qui ne comprenait absolument rien aux réactions de ses propres enfants. Alors que tant de pères de famille élèvent admirablement les leurs sans avoir jamais étudié la psychologie de l'enfant ni les techniques de l'éducation.

Combien d'étudiants en médicine, enfouis dans leurs livres, connaissent sur le bout du doigt les symptômes de toutes les maladies et se trouvent désarmés devant un malade en chair et en os.

Une des grandes faiblesses du monde moderne, c'est de subir trop exclusivement l'influence de ceux qui ne possèdent que ce côté théorique du savoir, c'est-à-dire les savants et les professeurs. "Celui qui le sait, le fait, disait un humoriste; celui que ne le sait pas, l'enseigne.''

Le savoir théorique est toujours utile, mais il n'est jamais suffisant. Réduit à lui-même, il provoque un complexe de présomption et d'impuissance que est souvent plus nuisible que l'ignorance. Pour ne citer qu'un seul exemple, évoquons le dirigisme économique dont les règlements, élaborés par des théoriciens en chambre, perturbent gravement les mécanismes concrets de la production et de la consommation.

Le savoir abstrait ne met en jeu que les facultés cérébrales; le vrai savoir concerne l'homme tout entier: il implique l'intuition, la sympathie, la finesse, le sens pratique, l'instinct créateur, etc... c'est-à-dire un ensemble de qualités qui nous sont données d'abord par la nature et qui ne se développent ensuite qu'a l'école de la vie et de l'expérience. Sans lui, la science théorique demeure superficielle et stérile, car la valeur profonde d'un homme se mesure au résultat de ses actions et non à l'étendue de ses connaissances.

Fonte: Revista "Itinéraires" (Billets, 3 juin 1977)

sábado, 7 de novembro de 2009

Onde começa a falácia do relativismo moral

Todo o problema está nisso. Os homens têm uma natureza comum? Participam de uma essência idêntica que se diversifica em cada indivíduo? Para nós, que cremos numa origem e num fim eternos do homem, a questão não apresenta dificuldade. A permanência dos valores da cultura se prende às constantes da natureza humana, criada à imagem de um Deus infinito e eterno.

Essas constantes se referem antes de tudo ao Ser e em seguida a esses atributos do Ser que chamamos transcendentais e que são o verdadeiro, o belo, o bem. Esses valores, imutáveis e irrecusáveis em sua fonte e dos quais a cultura não apresenta senão um dos múltiplos aspectos, não os possuímos aqui embaixo a não ser de uma maneira imperfeita e fragmentária---o que fornece um argumento aos relativistas e aos céticos para contestar-lhes o fundamento. O que nos parece verdadeiro, o belo e o bem em tal tempo ou em tal lugar nos parecerá falso, disforme ou mau em tal outro tempo ou em tal outro lugar. Nossa visão dos transcendentais é como uma cota mal talhada, reflexo de um medida ideal de que trazemos em nós a marca confusa, mas indelével. Se assim não fosse como poderíamos julgar de suas deformações? Quando um Pascal nos diz por exemplo: "verdade aquém dos Pirineus, erro além" ou "engraçada justiça que um ribeirão limita", é que ele pressente uma verdade e uma justiça superiores para as quais, conforme as palavras de Luís XIV "não há Pirineus". Esses valores supremos podemos esmigalhá-los e prostitui-los ao infinito por fraqueza de espírito, conformismo ou fanatismo, mas não podemos aniquilá-los, porque, como o diamante só se talha por si mesmo, é ainda a eles que devemos referir-nos para contestá-los ou recusá-los.

É em nome da verdade que se decreta que não há verdade. Eu penso aqui numa peça de Thierry Maulnier na qual um filósofo proclama que nossa época chegou à certeza de que a palavra verdade não significa mais nada. Ao que uma jovem adolescente responde com entusiamo: "Como é verdadeiro isso!"

Gustave Thibon, Les valeurs permanentes de la culture, in "Actes du Congrès de Lausanne - V", Paris 1969

Fonte: Revista Hora Presente (número 7, outubro de 1970)

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Realidade social e miragem coletivista (I)

[SOCIALISMO E PROGRESSO
"Socialismo" é uma das palavras mágicas de nosso tempo, cuja simples enunciação desperta surtos de fé incondicional. A "socialização" é para muitos o caminho para a solução dos mais graves problemas com que se defronta o homem na hora presente.
Até que ponto, porém, êsse mito corresponde às esperanças que nêle tantos depositam? Até que ponto êle, longe de resolver, só faz agravar a condição degradada do homem moderno? Neste trabalho, que constituiu uma comunicação ao IV Congresso do "Ofício Internacional de Obras de Formação Cívica e de Ação Cultural segundo o Direito Natural e Cristão" (Lausanne, 1967), tem-se em vista exatamente examinar O CONFLITO ENTRE O COLETIVISMO E A PROMOÇÃO DO HOMEM.]

O homem é um animal social (zoon politikon): eis uma evidência indiscutível, confirmada pela experiência de todos os homens e de todos os séculos. Isso significa que ele tem essencialmente necessidade, para realizar sua natureza, da ajuda de seus semelhantes.

Um animal das florestas---uma raposa, por exemplo---não precisa de seus congêneres senão para nascer e para ser amamentado e protegido durante os primeiros dias de suas existência: após o que pode muito bem atingir a perfeição própria à sua espécie vivendo num isolamento absoluto. Os gansos vivem muito satisfeitos em bando, mas eu tenho no meu aviário um ganso que jamais viu um outro ganso em sua vida e que não se ressente disso.---Quanto aos animais que não podem viver senão gregariamente (as abelhas, as formigas, etc.), não se pode dizer que eles sejam aperfeiçoados por essa coletividade, porque eles não existem senão por ela, nela e para ela. Eu me inclinaria a adotar as novas teorias sobre a natureza de certos insetos, que afirmam que o verdadeiro indivíduo é o organismo coletivo em relação ao qual cada inseto se comportaria como uma célula num corpo.

No homem não há nada de parecido. O que seria o indivíduo ao qual seus semelhantes não tivessem ensinado a falar, a ler, a exercer uma profissão, a praticar a moral, a conhecer e a amar a Deus? Nada... nem mesmo um animal como os outros. A revolta contra a sociedade---tão frequente no homem---é ainda um fenômeno social: malfeitores organizados em bandos, grupos anarquistas, etc.

E o homem entretanto não é parecido aos insetos cuja dependência em relação à coletividade é absoluta. Porque a sociedade o desenvolve sem absorvê-lo.

Qual é então a natureza da sociedade? O homem aliena uma parte de sua liberdade---refiro-me à sua liberdade em estado bruto, isto é, esse poder indeterminado de fazer não importa o que à margem de qualquer hierarquia de valores---para atingir, graças à segurança e aos serviços que a sociedade lhe proporciona, uma liberdade mais alta, aquela que responde às melhores faculdades de seu ser e que lhe permite escolher o bem, o verdadeiro e o belo. Um selvagem na floresta é absolutamente livre de fazer o que queira, mas a hostilidade da natureza, a pressão incessante das necessidades biológicas e a falta de educação restringem singularmente sua liberdade de escolher e a mantém a um nível bem inferior.

A palavra civilização vem de civis (cidadão), o que implica na presença e na influência da sociedade. O homem civilizado, dizia Maurras, recebe ao nascer mais do que ele traz: ele é um herdeiro.

A sociedade é, pois, feita antes de tudo para a pessoa. Até as restrições e os sacrifícios que ela nos impõe são como uma poda efetuada na planta humana, que redistribui sua seiva e assegura o crescimento harmoniosos de seus ramos. O homem é uma teia de relações, ele vive por suas ligações: as modificações sociais alargam a solidão, dilatam a dimensão interior do indivídio. E é por isso que Santo Tomás diz em substância que o bem comum é o que mais profundo dos bens individuais, no sentido de que a sociedade nos faz participar dos valores supremos assim como na origem biológica nós participamos desses bens comuns que são o ar, a água ou a luz.

Porque a sociedade não é uma entidade distinta dos membros que a compõem nem superior a estes. Na sociedade, o vínculo é subordinado aos elementos que ele liga. Assim, uma empresa industrial não tem seu fim nela mesma: ela está ao serviço dos trabalhadores e dos consumidores; a pátria está ao serviço dos trabalhadores e dos consumidores; a pátria está ao serviço dos trabalhadores e dos consumidores; a pátria está ao serviço dos fios, porque só os fios têm uma alma imortal e votada a Deus. Em última análise, o fim supremo da sociedade civil ou religiosa é proteger e fazer desabrochar essa vocação divina da alma.

O teólogo protestante Vinet escreveu que a sociedade era para a alma o que o oceano é para o navio: o elemento, o meio que o mantém e que ele atravessa para atingir seu fim que é o porto. A pátria do navio não é o mar, mas sem o mar ele não encontraria jamais sua pátria. Essa metáfora representa muito bem a mediação social e a inalienável liberdade do homem que não encontra seu fim senão em Deus.

Continua...

Fonte: Revista Hora Presente (número 1 - set/out 1968)