terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Aforismos (V)

A terra tanto pode encadear, como libertar...

Não separe o homem o que Deus uniu. Não confies amigo, nos idólatras que quebram e conspurcam a unidade. Não acredites nos que separam a alma da carne e caluniam o corpo. Nem tão pouco nos que separam a carne da alma e mofam da pureza das alturas. Ama como todo o teu coração e com toda a tua alma. Há coisas em ti, enamoradas de voluptuosidades mais intensas ou de vôos mais fáceis, que pretendem desfazer a unidade. Bem sei. A tua carne demasiado pesada, idealizará uma beatitude atascada, e o teu espírito, demasiado pronto, um vôo de sonho e de nuvem. Mas, que importa? Religiosamente, incansavelmente, segura-te, tem mão em ti. Defende bem a tua imortal e frágil unidade. Ainda que seja para saciar a tua fome (mesmo de justiça e de amor), ou para repousar da tua grande fadiga, não permitas que nenhuma parte do teu ser proceda e avance sozinho. Se for necessário, caminha mais devagar. Mas sempre todo, em corpo e alma. Separada do espírito, a carne corrompe-se; e o espírito, separado da carne, empalidece, como flor desenraizada. E reduz-se a um fantasma.

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Ser e ter

Contenta-te com ter pouco, mas procura ser muito. A amplitude do teu ser dilatará até as estrelas o humilde canteiro do teu jardim. Não tires ao dia, senão com prudente economia, as possibilidades que dormem em ti. Deixa, neste domínio, largas zonas virgens e inexploradas. Em vez de te apressares a possuir, limita-te algumas vezes, muitas vezes mesmo, à impressão razoável do que "podes". Prefere a tua fome viva, a uma saciedade amortecedora. Cultiva a calma na realização das tuas esperanças. Não vês como são raras, na terra, as felicidades que sobrelevam em pureza à esperança? Deixa de colher muitos dos frutos que se te oferecem. Lembra-te dos malefícios que neles se podem esconder, um dos quais é privar-te da tua fome e da tua alma. Reserva-te para o único bem digno de ti, que é, não a extinção, mas a expansão do teu desejo.

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Obediência e servidão

Não se foge à obediência, senão para cair na servidão. Afliges-te, vendo de que é que os homens são escravos? Se queres a chave deste "mistério de abjeção", procura ver a quem é que eles fogem de servir.

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O homem não escapa à autoridade das coisas do alto, que o sustentam, senão para cair na tirania das coisas de baixo, que o devoram.

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Aquele a quem a alegria facilmente se oferece, jamais conhecerá o gosto das alegrias profundas. É fácil blasfemar contra as provações e proclamar o direito do homem à felicidade. Mas, que seria o mundo, se nele o homem encontrasse a alegria e o repouso ao nível da sua decadência? Que seria a terra, se nela o homem pudesse cair, sem se moagoar? Um coração onde a dor não mordeu, jamais poderá respirar o ar puro das alturas, o ar puríssimo do céu.

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Olha como as criaturas fervilham e se agitam! Que querem? Que procuram? Dir-se-ia que vivem sob a tentação fatal de abortar, de falhar estupidamente, em cada gesto, em cada pensamento, em cada palavra, em cada intenção. Falta-lhes a força necessária para deixarem amadurecer, dentro de si, a dor, a soledade, e mesmo Deus. Sente-se que ambicionam os meios mais rápidos, mais próximos, mais imediatos, de se desembaraçarem de tudo, sejam os braços de uma mulher, seja uma vida fácil, sejam os vãos atrativos da glória ou do poder. Não querem dar à luz na dor. Resultado? Abortam numa dor ainda maior: a dor estéril e sem sentido. De fato, o aborto nunca foi um parto. E o fruto arrancado à força deixa nas entranhas uma chaga difícil e, até, muitas vezes, impossível de cicatrizar.

Fonte: "A escada de Jacob" - Editorial Aster - Colecção Éfeso