terça-feira, 30 de abril de 2013

Reflexão - do capítulo "O eu e a alma"

O ódio implica sempre um mínimo de participação no mal. "Diz-me quem odeias, dir-te-ei quem és". O santo chora sobre o mau, não o odeia. O que nós odiamos no próximo é o nosso próprio pecado. Mas por que mecanismo? (porque não é uma lei universal, e nós podemos não odiar, nos outros, defeitos que possuímos). Precisemos: o mal que, sob a cor de virtude e indignação, nós odiamos mais nos outros, é o mal que reside em nós, não no estado manifesto e espontâneo (um libertino, por exemplo, não odeia os outros libertinos, a não ser em caso de rivalidade pessoal), mas, no estado de tentação, de perigo, é o mal contraído, recalcado, ou por timidez, impotência (é que a nossa alma, ai! não é bastante atrevida...) ou por imperativos morais suficientemente fortes para impedirem o pecado de se exteriorizar, mas demasiadamente fracos para lhe destruir as raízes no nosso coração. Ninguém, por exemplo, aborrece mais a luxúria do que as "solteironas" roídas de desejos inconfessáveis. "Vê com que olhos a virtude me detesta", diz D. João de Rostand...

A argumentação vale talvez para o ódio do mal, objectar-se-á. Mas para o ódio do bem? Aqueles que odeiam o bem (e Satanás, em primeiro lugar) não são os seres mais perversos, aqueles que não albergam em si bem algum? Responderei que a mesma lei se aplica ao ódio do bem. Os perseguidores, os sádicos, aqueles que odeiam "gratuitamente" a virtude e a santidade são maus, certamente, mas maus que trazem (ou antes, trouxeram) no coração um germe de virtude ou de santidade que eles de lá arrancaram. O espetáculo da pureza é para eles insuportável, porque lhes reaviva a ferida causada por este abortamento, porque os comprime entre o possível de ontem e o impossível de hoje. Odeia-se mais do que tudo o que se teria podido possuir e por nossa culpa se perdeu, a altura para a qual estávamos feitos e que nos desespera de jamais poder atingir. O ódio irredutível do bem procede da agonia e do desespero do bem em nós (é por excelência o caso do demônio); o sádico é um místico frustrado. A alma a quem Deus recusou toda a semente de heroísmo ou de santidade, o ser incuravelmente vulgar e medíocre (a vulgaridade, a mediocridade são talvez mais opostas ao bem supremo do que o mal) não se irrita diante dos actos dos heróis ou dos santos; as suas reações perante as formas supremas do bem são paralelas às da alma perfeitamente pura em face do mal: espanta-se e não compreende, vê nisso uma loucura que merece o riso ou a piedade, e se, no caso de fracasso, ele se torna perseguidor, é sem paixão e por motivos de conformismo social. Havia, certamente, mais possibilidades divinas (renegadas e maculadas) naqueles que crucificaram Jesus Cristo do que naqueles que o desconheceram sem o odiar. Caifás e Judas, em certo sentido, estavam mais perto de Jesus do que Pôncio Pilatos...

Fonte: "O olhar que se esquiva à luz" - Livraria Figueirinhas - Porto, 1957

sábado, 13 de abril de 2013

Prece da felicidade terrestre

O meu coração envelheceu à maneira dum véu: a usura dos dias tornou-o mais transparente e mais suave. A árida tensão, o triste oscilar da balança entre a carne e o espírito, a dor que vem a pós as vitórias da alma e o remorso que segue os triunfos dos corpo --- tudo isso não é mais do que a lembrança dum mau sonho. O meu espírito fez-se carne e esta tornou-se espírito. Sinto com o meu pensamento e penso com os meus sentidos. Não sou mais esta carne rebelde que desperta apetites contra o espírito, nem um espírito cioso que se separa da carne. Reuni as duas metades do meu ser: enfim, sou um homem!

Na embriaguez dos sentidos, encontrei a inocência, e o deslumbramento da felicidade ensinou-me a humildade. Não recusei nenhuma alegria, não repeli nenhum sofrimento --- contanto que fossem reais. Não conheço senão três inimigos --- três mentiras: o orgulho em que o eu devora a alma, a avareza que tudo quer para si e a vaidade, que se alimenta de fumo. Todos os meus amores e alegrias reuni num feixe único e jamais consentirei separar uma só espiga. Falam-me de opção e eu respondo: unidade.

Não sou cego e sei o que me espera. Ouço a moral estreita, a antiga prudência (a dos hábeis e não dos sábios, porque a loucura é para a verdadeira sabedoria o que o sal é para o mar --- como já Platão dizia) murmurar-me aos ouvidos: que farás tu, homem apanhado no visco dos prazeres efêmeros e rebelde à renúncia, quando soar a hora inevitável da prova? Que farei? --- sofrer em todo o meu ser. Não tendo sabido nem querido libertar-me, sentirei a libertação forçada: terei amanhã verdadeiros sofrimentos, como hoje tenho verdadeiras alegrias. Mas vós, cuja virtude não ousa tocar os frutos da terra, e não conheceis o agridoce sabor e o antegosto de morte e eternidade que deixam na alma, de que sereis privados quando a tempestade tiver devastado o pomar?

A vossa libertação dos bens presentes não será uma segurança contra os males futuros? O mesmo vento vos arrastará, uns e outros, mas eu, cujas raízes mergulharam na terra maternal e enganosa, sofrerei mais do que vós, que antecipadamente vos transformastes em folhas mortas. E encontrareis sempre um refúgio, um penhor, na estéril altivez da vossa virtude, que se basta a si própria, enquanto eu, separado de tudo o que amo, terei perdido todas os incentivos de viver, e o orgulho, a fidelidade a mim mesmo, não me servirão de nenhum auxílio. Então, só as mãos de Deus poderão curar a minha ferida, só o amor infinito poderá corresponder ao meu desespero.

Fonte:"O olhar que se esquiva à luz" - Livraria Figueirinhas - Porto, 1957

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Reflexão - do capítulo "Lei para o alto e lei para baixo"

Parábola das aves do céu e dos lírios dos campos.
--- Certamente, a vida é mais alguma coisa do que o alimento, mas ela não pode subsistir sem nos alimentarmos e vestirmos. As aves do céu, "que não têm abrigo nem celeiro, e os lírios do campo, que não fiam nem tecem", sucumbem quando o rigor do Inverno suspende os benefícios da Providência. "Vosso Pai sabe aquilo de que necessitais". Mas apraz a Deus desviar o curso natural das coisas para satisfazer as necessidades dos seus eleitos? O mesmo sol e a mesma chuva não incidem igualmente sobre os justo e os pecadores? Estas objeções aumentam de peso, se pensarmos que os mesmos lábio divinos, que exprimem aqui a fé nas solicitudes temporais da Providência (os cabelos da vossa cabeça são contados... tudo o mais vos será dado por acréscimo...) deixarão cair mais tarde este grito desesperado: "Meu Pai, por que me abandonaste?" É mister pensar também que, se este "acréscimo" temporal prometido por Cristo fosse a recompensa automática do abandono à Providência, tal abandono perderia todo o seu valor sobrenatural e não seria mais que subterfúgio desta providência terrestre que Cristo condenou.

As palavras de Cristo significam apenas isso: não tenhais apego aos bens deste mundo e, se assim procederdes, tereis tanta probabilidade de os alcançardes como se fizésseis toda a diligência em adquiri-los, pois que o nosso destino, mesmo temporal, não depende exclusivamente dos nossos esforços ou nossa previdência, e o excesso de solicitude leva-nos muitas vezes ao revés como o excesso de negligência.

Por conseguinte, se deveis morrer, como as aves do céu e os lírios dos campos, nos dias de Inverno, que importa este acidente, visto que por vossa confiança tereis amontoado um tesouro inesgotável no céu? Esta última palavra é a chave da parábola. Por maiores que sejam os tesouros acumulados pela prudência carnal, todos eles se esgotam e frequentes vezes a nossa própria vida acaba antes. Um pouco mais cedo, um pouco mais tarde, que importa? De que valem dias finitos e bens caducos? O Evangelho ensina-nos a arte de viver acima do tempo (e esta vida não depende do sustento e do vestuário) e não a arte de nos prolongarmos no tempo.

Fonte: "O olhar que se esquiva à luz - Livraria Figueirinhas - Porto, 1957