domingo, 21 de novembro de 2010

Gustave Thibon e o Aforismo

O aforismo é um gênero literário: tem os seus limites, mas tem também o seu valor. Jules Lemaitre, numa página tão brilhante como superficial, tentou ridicularizar o aforismo, pondo a descoberto os artifícios que presidem à sua confecção. E, sem dúvida, não é difícil, manejando o lugar comum, a antítese ou o paradoxo, fabricar em série máximas sem substância. Mas prova isso alguma coisa? Ficarão os outros gêneros literários ao abrigo da facilidade e do verbalismo? Não haverá artifícios igualmente usados para redigir uma tragédia em cinco actos, um poema em doze cantos, um romance ou uma tese de filosofia? Quer proceda por saltos, como no aforismo, quer se alongue por obras perfeitamente compostas, o pensamento dum escritor pode ser igualmente medíocre ou profundo: só o génio dá solução ao debate. A originalidade, a unidade da inspiração são tão fáceis de atingir na obra de um Pascal, de um Rochefoucauld ou de um Nietzsche como na de um Spinoza ou de um Bergson. Se o leitor não está satisfeito com os meus aforismos, se neles apreende mal o sentido e a conexão, não é o instrumento que deve acusar, mas o artífice...

Encontro, em velhas notas, alguns juízos sobre o aforismo que me permito transcrever aqui, porque correspondem bem ao meu pensamento.

"A máxima, dizia eu, é mais um excitante do que um alimento: exige da parte do leitor muito mais finura e espírito de síntese do que uma obra composta(arranjada). Deixa-lhe o cuidado de evocar, de completar e de unificar, abre um vasto crédito à sua inteligência. Os "pensamentos" são para uso dos que pensam..."

"O autor de máximas orienta o leitor pelas diferentes avenidas do pensamento, mas não se lhe impõe à maneira dum cicerone obsidiante, deixa-lhe a alegria de descobrir e sobretudo a de adivinhar. E depois, o aforismo apresenta, para os espíritos altivos e púdicos, essa inestimável vantagem de ser bastante transparente para revelar o nosso segredo aos que nos amam, e suficientemente opaco para o dissimular aos outros. Porque repugna essencialmente ao espírito altivo e púdico dizer tudo: longe de progredir pacientemente, protegendo as costas e antecipando-se a responder a todas as abjecções, o autor de máximas sabe-se e quere-se vulnerável; a marcha descontínua e aparentemente anárquica do seu pensamento fornece aos seus adversários mil ocasiões fáceis de o refutar. Enquanto um trabalho didáctico se nos impõe, de fora, com todo o peso das suas provas e das suas deduções verdadeiras ou falsas, o aforismo só pode dar os seus frutos num clima de liberdade, de confiança e de intimidade: o autor dá constantemente uma prova de confiança ao leitor, e tem necessidade de que o leitor, por sua vez, lha dê sem cessar".

Dar uma prova de confiança ao leitor... Esse é para mim o fulcro do problema. Há uns dez anos, um grande filósofo, a quem me honro de dever muito, tendo notado nos meus primeiros ensaios um certo abuso da elipse e do sub-entendido, escrevia-me paternalmente: "Nunca avalie por excesso a inteligência do leitor". Bem sei que ele tinha razão quanto a uma boa parte da humanidade, mas se só houvesse tais leitores, preferia não escrever. Se o leitor não é capaz de assimilar espontâneamente (isto é, de integrar na sua síntese pessoal) os vários alimentos que se lhe proporcionam, se é preciso mastigar e digerir por ele, mais vale estar calado.

Fonte: "O pão de cada dia" - Editorial Aster - Colecção Éfeso

domingo, 7 de novembro de 2010

Psicologia e desespero

Se há uma forma particularmente perversa da "exploração do homem pelo homem", é este furor de introspecção, de autofagia intelectual que consiste em procurar exclusivamente no conhecimento do homem a solução dos problemas humanos, este impudor do espírito reflexo que desnuda a alma até às raízes e até aos fundamentos, como uma planta arrancada, a uma luz que ilumina sem mentir, esta vivissecção psicológica que, sob a cor de sinceridade e de "teste" se estadeia em todos os ramos da literatura, desde o estudo científico objectivo até a confissão pessoal.

O nudismo físico não é mais que um passatempo de crianças ao pé das múltiplas formas deste nudismo moral que se insinua nos costumes a pouco e pouco. Estão em moda as confidências públicas. Nós não compreendemos muito bem como é que estas duas palavras possam casar-se: vasculha-se, até aos seus últimos recantos, a vida privada das personagens célebres; garotas falsamente cândidas escrevem livros para nos contar as peripécias da sua iniciação sexual, e como perderam uma virgindade que, sem dúvida, jamais possuíram senão no corpo; todas as intimidades, normais ou anormais, são reveladas, divulgadas, medidas, postas em equações e em diagramas, e o vício torna-se, segundo a expressão de Proust, uma ciência exacta. O pior, de tudo isso, não é o mau gosto e a imoralidade, mas o perigo de esgotamento e esterilidade. Este "psicologismo", com efeito, devora-se a si mesmo e leva a um beco sem saída, porque o homem assim explorado até às entranhas e até no que elas contêm, dentro em pouco nada poderá oferecer para alimento dos demónios da curiosidade e do exibicionismo. "Ah! tudo está bebido, tudo foi comido; nada mais há a dizer..." Chegamos ao ponto em que o homem nada mais terá a aprender sobre o homem. Coisas, talvez banais em si mesmas, mas veladas e impregnadas até aqui dum mistério fecundante e que cada um podia redescobrir por sua própria conta com o deslumbramento do viajante que pisa uma terra virgem, perdem ao mesmo tempo as suas trevas e a sua magia: a terra incógnita, a última Thulé do desejo e do sonho transforma-se em jardim público!

Esta saciedade provoca o fastio e, por contraposição, a necessidade de aperitivos e condimentos mais enérgicos, de revelações mais sensacionais. Mas os próprios condimentos enfastiam, o sensacional embota-se, e o que ontem se tomava como um estimulante toma-se hoje, como uma tisana insípida. E o homem volta a girar em torno de sua gaiola iluminada até aos seus últimos recantos pelos projectores da introspecção. Que capítulo não poderia escrever-se sobre a psicologia parasita da alma!

É verdade também, em virtude desta polaridade misteriosa que liga o mal ao remédio, que este clima de tédio e desespero faz apelo irresistìvelmente ao raiar duma nova esperança. A viagem à volta de si mesmo, tendo esgotado todas as suas reservas de imprevisão, convida o homem a fugir para além dele próprio: o nosso espírito, saturado de tantos mistérios violados, só encontra saída e refúgio no único mistério inviolável: o da sua relação com Deus. Da sua relação vivida e não expressa, porque a expressão leva-o ao seu termo humano, demasiadamente humano...

Deste ponto de vista, haveria muito a dizer de uma literatura que faz da alma e da vida interior do sacerdote o objeto duma curiosidade perturbante e não sei que deleite moroso. Esta exploração metódica da mina sacerdotal veio em substituição das odiosas calúnias anticlericais do último século. É uma nova maneira de difamar o sacerdote, mais íntima e refinada que a antiga, mas infinitamente mais perversa. Outrora, fazia-se em bocados e traçava-se uma imagem do mau padre, tão artificial na sua baixeza como o cromo do bom padre na sua pseudopureza; hoje, sorvem-se a pequenos goles os segredos da alma sacerdotal. Em vez da mandíbula que dilacera, ficou a língua que saboreia, mas é sempre o padre que se dilacera e Deus está ausente do festim.

Reponder-se-á que não pode explorar-se a alma do padre sem encontrar Deus que a habita. Sim, mas sob que aspecto e em que condições? A curiosidade psicológica mal se acorda com o sentido divino. O que há de essencial na padre é precisamente o que ultrapassa toda a psicologia: a sua renúncia, a sua transparência, o esquecimento de sua pessoa e dos seus limites em prol do mistério que ele transmite. O padre não irradia por si mesmo, mas, à maneira dos corpos diáfanos, pela luz que o atravessa; e a análise psicológica esquece por fatalidade essa luz muito simples para estudar nas suas minúcias a estrutura do corpo diáfano.

Fonte: "O olhar que se esquiva à luz" - Livraria Figueirinhas - Porto, 1957

sábado, 6 de novembro de 2010

Um convidado: Rafael Gambra

Resenha do livro "El silencio de Dios" - Rafael Gambra, Editorial Prensa Española, Madrid, 1968. Prólogo de Gustave Thibon.

Porque Deus se cala

Deixemos falar o próprio autor. Numa entrevista dada a propósito deste livro e publicada na revista Roca Viva, assim justifica Rafael Gambra o título do mesmo: "O título desse meu último livro faz referência ao silêncio que Cristo manteve diante de seus acusadores e diante dos que em sua vida humana lhe falaram para tentá-lo. Alude também ao silêncio com que Deus responde aos mais duros transes da vida espiritual humana, e a como o homem deve saber escutar e interpretar esse silêncio na profundidade da fé. Refere-se, enfim, à duríssima prova que para a sobrevivência da fé e da Cristandade está supondo isso que se chame hoje "experiência pós-conciliar'', à angústia daqueles que crêem hoje perder a fé ou a esperança, enquanto Deus, uma vez mais, responde com o silêncio da sua dor''.

Mostra-nos o livro como nascem as civilizações históricas, mediante uma re-ligação transcendente, isto é, sobre bases sacralizadas, e como perecem por uma dissolução interior, decorrente de lenta erosão provocada pelo racionalismo, negador daquelas bases. Neste sentido, toma como ponto de partida o duplo conceito de engagement e apprivoisement, de Saint-Exupéry, para fazer o processo, à luz dessas noções, da civilização moderna tecnocratizada e paulatinamente desumanizada. Desligado de suas bases transcendentes, o homem acaba por se tornar também desligado dos "compromissos'' que o fazem participar da vida social no seu sentido mais profundo---o comunitário---e deixa de "domesticar'' os seres dos reinos inferiores que o cercam, tornando-se um estrangeiro no seu próprio mundo. Daí o fenômeno da massificação e as concepções mecanicistas do Estado de direito do liberalismo e do totalitarismo nivelador.

Na visão realista de Aristóteles, indivíduo e sociedade são "aspectos de um só ser: o homem concreto, que é ao mesmo tempo individual e social (natureza individual com radical tendência à sociabilidade), como demonstra o fato de que nunca se conheceram homens sem viver em sociedade, nem sociedade alguma que absorva a individualidade como nos grupos de animais gregários (formigueiros, enxames)''. O abstracionismo racionalista gerou primeiro a idéia do homem fora da sociedade, de Rousseau, inspirando o constitucionalismo liberal, e depois a concepção da sociedade absorvendo os homens, característica do Estado totalitário. Tanto para o liberalismo quanto para o socialismo, a sociedade passa a ser algo de extrínseco para o homem, sendo que no caso do socialismo o Estado a constrói como "um habitáculo técnico forjado mediante a organização e a adaptação dirigidas". A organização do Estado liberal cifra-se a uma técnica de convivência das liberdades, e a do Estado totalitário consiste no planejamento dos serviços e dos seguros abrangendo tôda a via humana.

"Em face de tais concepções de fundo racionalista"---escreve Gambra--- "a autêntica reivindicação humana se expressaria num impulso que, segundo seus diversos aspectos, poderíamos chamar corporativismo, institucionalismo ou comunitarismo histórico. A ordem social não se cifraria assim em criar ou manter um poder racional e neutro que vele só pela liberdade dos indivíduos ou que os proveja de meios e seguros. Mas, pelo contrário, consistiria em recuperar mediante o compromisso e a domesticação o universo existencial de grupos e de instituições capazes de conferir sentido histórico, cordial, à vida coletiva dos homens, e ao mesmo tempo defendê-la das supercriações do Estado racionalista planificador. Assim, pôde escrever Camus num de seus últimos livros: "A verdadeira libertação do homem se apoiou sempre nas realidades mais concretas: a família, a profissão, o município, que fazem transparecer em seus limites o ser, o coração vivo das coisas e dos homens". Tal, enfim, a idéia de Saint-Exupéry, que concebe a cidade como o navio ou a mansão dos homens, "comunidade de laços, de recordações, de esperanças, onde cada passo e cada tempo tem sentido".

"Compromisso, domesticação (apprivoisement) e corporativismo histórico vêm a ser assim os correlatos dialéticos do que no século racional foram o individualismo, a atitude estética e o liberalismo".

São sempre estas as idéias que dirigem o fio das reflexões contida no presente volume: "Na entrega (compromisso) e no amor, o homem cria sua própria personalidade e seu mundo próprio. Na sua sêde ou seu fervor, e na domesticação de um mundo valioso e sagrado para êle, está o verdadeiro homem e o sentido de seus dias".

Belas páginas sôbre a "aceleração da história"---tão bem estudada por Daniel Halévy e por Marcel de Corte---e um capítulo impressionante sôbre "a jogralizaçao da fé", comentado estas palavras de João XXIII: "Não é culpado sòmente quem de modo deliberado desfigura a verdade, mas igualmente quem, para estar "em dia", a atraiçôa com uma atitude ambígua".

Em seu prólogo, Gustave Thibon assim se expressa: "Num século em que reina o conformismo do absurdo e da desordem, em que o ídolo da revolução permanente se converteu em centro de atração para os rebanhos de escravos teledirigidos, nada há de mais nôvo e mais insólito do que pregar o retôrno às fontes e defender a natureza e a tradição".

Essa pregação tem sido uma constante na vida de Rafael Gambra. Em El silencio de Dios êle a retoma, em meio à amargura da hora presente, procurando sobrepôr-se ao derrotismo e "esperar contra tôda a esperança", segundo o conselho do Apóstolo, dando um brado veemente entre os "arautos e forjadores de uma futura reconciliação do homem com a Cidade; uma Cidade renovada cujos fundamentos re-ligados sejam aceitos na humildade, no amor, e nunca mais no orgulho racionalista dos "desmitificadores" da fé".

Clama, ne cesses... Êste livro---diz ainda Thibon---é "um grito de alarma profético". A nós que não queremos fugir aos "compromissos" e ao apprivoisement, que queremos preservar a natureza e salvar os valores da tradição, cumpre-nos gritar até que a nossa voz se imponha e faça calar o linguajar bárbaro dos slogans condicionadores do pensamento teleguiado.

E um dia Deus romperá o seu silêncio.

J.P.

Fonte: Revista "Hora Presente" - Ano I - Janeiro/Fevereiro 1969 - Número 3


sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Mito e realidade do amor

"Um só Tristão para uma só Isolda". Todo o amante julga única a sua bem-amada. É falso e é verdadeiro. O amor, como os contos de fadas, é uma mentira e uma realidade. Mentira, quando pretende aplicar-se às aparências terrestres, e realidade, como símbolo da vida espiritual e divina. Tem três graus: o sonho, que é uma aparência de aparência, depois esta aparência um pouco mais sólida do que nós chamamos o real, e enfim a verdadeira realidade, pressentida através do sonho e experimentada pela realidade imperfeita da vida quotidiana, a qual fecha o ciclo e nos põe em contacto com o eterno.

Todos os amorosos julgam possuir um ser eleito entre todos e encontrado por milagre. É estúpido, porque, não dispondo de uma escolha infinita, e impelidos por esta força assencialmente cega e anônima que é a sensualidade, são obrigados a contentar-se com o que encontram. O melhor amor, no princípio, não passa da combinação de uma necessidade e de um acaso. E o que nós amamos na bem-amada, é mais a posse do que o objecto, a consolação do que a consoladora. A própria fidelidade nada prova. Há homens de hábitos que se prendem a uma mulher, como certos amadores de vinho que só querem beber carrascão ou certos automobilistas que ficam sempre fiéis ao mesmo tipo de carro...

O amor verdadeiro começa quando a gente reconhece que o amor das criaturas não existe e que o ser "eleito" não passa de um alimento oferecido à nossa fome pelo acaso dos encontros---ou de um equívoco e uma ilusão do nosso caminhar às cegas para o absoluto. Qualquer outro teria fàcilmente ocupado o mesmo lugar, porque não há pão duro para quem tem fome e toda a madeira é boa para fazer ídolos. A revelação é dura, mas deste banho de verdade, vasto e amargo como um oceano, vê-se surgir, como uma aparição que dissipa as aparências, um novo amor da criatura que nada mais deve à necessidade, ao acaso, e a mentira; este amor é puro, porque reconheceu e se despojou de todas as medidas, invunerável, porque atravessou a morte, único, porque encontra no ser amado a imagem virgem do Deus criador. Mas antes de ressuscitar faz morrer, e é por detrás da lia do nada que se saboreia o ser.

Assim, nós não amamos um ser porque ele é único, pelo contrário, porque nós o amamos é que ele se torna único. É o amor que nos eleva à existência imutável e imortal; ele é "forte como a morte", porque, como ela, nos arranca ao tempo e às aparências. Antes de amarmos e sermos amados, não temos verdadeira existência; não passamos de uma nebulosa de possibilidades confusas e quase anónimas. O amor liberta-nos da massa informe e comum, do vão turbilhão dos átomos inseparáveis; de duas solidões faz uma. Assim, todos os blocos de mármore do mundo se assemelham mais ou menos; mas quando Miguel Ângelo escolheu um deles, ou fosse por acaso ou para esculpir o seu sonho, todos os acasos são imediatamente ultrapassados, e a forma da estátua corresponde a uma ideia única de um Deus eterno. E a matéria e a forma da obra tornam-se inseparáveis para sempre.

É precisamente o milagre do amor transformar os encontros do acaso em dons da Providência, e revelar-nos, através das provas que matam em nós tudo o que é mortal, a frágil e divina centelha de um amor irredutível a todos os denominadores comuns da matéria e do tempo. Como, sem passar pela morte, saberíamos nós que temos algo de imortal?

Fonte: "O olhar que se esquiva à luz" - Livraria Figueirinhas - Porto, 1957

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O sentido da história

Aos cristãos que agitam aos nossos olhos o estandarte já gasto do "plano de Deus na história" (que se traduziria por um aperfeiçoamento contínuo do homem e das estruturas da Cidade), é mister pôr esta questão central: Cristo veio para nos elevar acima do tempo ou para melhorar a nossa condição no tempo?

A resposta transluz no Evangelho, onde nunca se tratam problemas estritamente temporais: Cristo veio unicamente para nos trazer a vida eterna. Que, por via de consequência---por acréscimo, como diz na parábola das aves do céu e dos lírios dos campos---esse dom celeste guia e ajuda a nossa marcha nos caminhos da terra, é uma verdade de experiência, porque o homem que busca o absoluto e o infinito, onde existem, evita, no finito e no relativo, o que vai além da medida e que é a origem do seu pecado e da sua desgraça.

Aquele que domina o tempo é quem melhor preenche os estreitos limites que o tempo lhe impõe. O tempo não deixa de ser uma posição movediça, um ciclo fatal e monótono ao qual não se escapa senão por duas faculdades orientadas para o eterno: a inteligência e o amor. O seu movimento rotatório, que faz alternar os contrários, exclui todo o poder indefinido de criação e toda a promessa de libertação---nihil novi sub sole---nada há que seja novo debaixo do sol Os adoradores do progresso, que desconhecem esta fatalidade, assemelham-se a cativos como que enlouquecidos, que se lançam alternativamente contra as paredes da sua prisão e logo após recambiados como uma bola ao seu ponto de partida num movimento sem fim. Os Hindus chamam a esta ilusão "o transvio dos contrários".

O choque de todos os nossos desejos, desde as paixões individuais até às revoluções colectivas, a fecundidade inicial e o malogro final dos nossos esforços temporais confirmam esta lei. Péguy falava já destes "retornos que voltam ao ponto de partida" e dos "progressos mais velhos que o velho hábito".

A única superioridade sobre os nossos avós está apenas nas facilidades que temos de explorar com maior rapidez o território da nossa prisão---privilégio que aparentemente deslumbra e embriaga, mas falaz nos seus resultados, pois que nos dá com maior rapidez a consciência do nosso incurável cativeiro. O homem moderno vangloria-se das mil possibilidades que se lhe oferecem de realizar os seus desejos. Mas ignora se, porventura, a sua realização revela do mesmo passo a sua vaidade?

Quanto maior for a distância entre a sede e a concha da água, por mais tempo gozaremos do viático da ilusão. Quando o homem se arrastava penosamente dum extremo ao outro da sua caverna, e sua ignorância podia confundir a parede e a porta de saída: o finito era tão longe e difícil de atingir, que dava a impressão do infinito. Ao passo que hoje...! A redução de todas as distâncias no tempo e no espaço faz do viático da esperança um comprimido que se engole como uma pílula de farmácia.

Que resta, na alma dum homem de negócios que toma o avião para New-York, daquele arrepio interior dos companheiros de Colombo, singrando para um Ocidente fabuloso?

Enquanto o homem dirige a sua marcha para os bens que vê flutuar nos limites do sonho e do impossível, uma miragem enche de encanto sua carreira e, até mesmo, se atingir o fim almejado, um vislumbre da febre dourada da expectativa dá colorido à posse. Mas, num mundo encurtado e domesticado, em que o efeito segue a promessa como uma sombra e um eco, toda a ilusão se desvanece apenas concebida e o malogro das miragens deixa-nos sós diante dum deserto de vaidade. A vaga de niilismo e desespero que submerge hoje a alma humana, é o reflexo da vaga de optimismo temporal dos adoradores do progresso---e mais uma prova da natureza cíclica do tempo e da identidade dos contrários.

Aqueles que buscam a salvação e a libertação ao nível do tempo hão-de acusar-me de pessimismo.

Responderei que são eles que arrastam os homens ao desespero, associando seus votos a um ídolo infecundo. Sejamos claros. O tempo permanece o que é: um círculo e uma prisão. Mas nós ficamos o que somos: seres capazes de quebrar este círculo e evadir-nos desta prisão. Deixar de crer na virtude intríseca da mudança, não ligar a sua esperança às promessas do futuro, não é desesperar do homem, porque o tempo não constitui a medida interior do homem. A vida temporal tem obstáculos que nos tornam prisioneiros pelo lado inferior de nós mesmos, mas a evasão para o alto é sempre possível. Se procuramos refúgio, pela contemplação e o amor, no círculo infinito da eternidade, poderemos libertar-nos do círculo finito do tempo---a saída está aberta não a uma humanidade vaga, relegada para um futuro quimérico, mas a cada um de nós e à própria hora em que vivemos. Por que falar, pois, de pessimismo? Não há necessidade de correr após o fantasma do que virá a ser, quando nos podemos unir imediatamente à plenitude do que é. Esta plenitude todos nós a procuramos, mas é-nos dada ou recusada consoante a altitude dos nossos votos. O mito do progresso consiste em esperar do futuro uma beatitude, que as condições da existência terrestre tornam impossível, isto é, pedir ao tempo que nos liberte do tempo.

O realismo da fé consiste em nos abrirmos à vida eterna. Ora "a vida eterna está precisamente em que os homens conheçam o único verdadeiro Deus e Aquele que nos foi enviado, Jesus Cristo". E ainda está em buscar primeiro que tudo o reino de Deus e a sua justiça---que não é a justiça humana, cega e manca, mas a reconciliação luminosa do homem com a sua origem, para que se restabeleça o equilíbrio fundamental da criação e, por acréscimo, quanto as nossas enfermidades e os nossos limites o permitem, se encontre a solução dos problemas temporais que obsidiam a nossa época e que permanecem insolúveis ao nível do tempo. Até mesmo os problemas terrestres têm a sua solução no céu: a questão é posta cá na terra, mas a resposta vem do alto. De igual modo, a rota dos navios é através dos mares, mas a luz que os orienta por entre as ondas cai do farol erguido acima das vagas.

Fonte: "O olhar que se esquiva à luz" - Livraria Figueirinhas - Porto, 1957

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Justice et miséricorde

"La nécessité, en tant qu'absolument autre que le bien, est le bien lui-même" (Simone Weil). Un théologien protestant a dit dans le même sens que "la foi est la participation à la faiblesse de Dieu dans le monde". C'est-à-dire le consentemente intérieur à un ordre où la miséricorde et la puissance n'ont aucun lien apparent entre elles. Cette pensée contredit l'éternel rêve de l'homme: cellui d'une puissance surnaturelle qui, non seulement aurait pitié de nous, mais dont la miséricorde se traduirait par des grâces, des favaeurs, voire des miracles sur le plan temporel. Le rêve d'une providence qui desserrerait pour nous l'étau de la nécessité en faisant pleuvoir dans nos mains ou dans nos âmes---c'est-à-dire au niveau de l'evénement extérieur ou intérieur---des bienfaits étrangers à l'inexorable enchaînement des effets et des causes ou sans proportion avec nos efforts pour modifier cet enchaînement.

De ce rêve, procède une infinité de prières: celle du paysan dont la récolte sèche sur pied et qui demand la pluie, celle du malade incurable qui se débat contre la mort, celle du vieillard après la ferveur d la jeunesse évanouie, celle de l'élève qui n'a pas préparé son examen et qui implore une illumination analogue au don des langues.

Contrairement au texte célèbre des Psaumes qui dénonce l'impuissance des idoles, c'est à cette confusion de la puissance et de la grâce qu'on reconnaît, à tous les degrés et sous n'importe quel nom, la présence de l'idolâtrie. ---Seigneur, ayez pitié de moi! cela signifie presque toujours: Seigneur, séparez-moi de mon destin, épargnez-moi d'être brisé par cette nécessité que vous avez crée et à laquelle vous vous êtes soumis sous les oliviers et sur la croix, faites avorter en moi la contradiction qui est la semence de Dieu dans l'homme, déchirez avant terme ce voile d'apparences qui ne doit s'ouvrir qu'à la mort, faites que le vrai me devienne vérifiable, sinon dans l'événement extérieur, du moins à la surface de la vie intérieure, dans mes sentiments, mes états d'âme: donnez à mon âme une nouvelle teinture, mais gardez-vous bien de la tuer pour qu'elle renaisse, car je ne veux pas changer d'âme, je ne veux pax d'un coeur nouveau, je veux un coer repeint, remis à neuf du dehors, tout luisant de vernis divin. Ce qui revient à dire: que votre puissance me protège contre l'appel dévorant de votre pureté; soyez pour moi l'apparence qui sauve et non la réalite qui tue.

Pour que la miséricorde soit pure, il faut qu'elle soit sans puissance et, apparemment, sans effet. J'entends sans effet sur la nécessité pour être reçue, dans sa plénitude sans limite, par la liberté. Sans effect sur la mort pour préparer la résurrection. Sinon les rapports entre l'âme et Dieu restent sur le plan de l'avoir: ce sont des rapports entre le puissant et le faible, entre le maître et l'esclave. Car Dieu est plus faible que nous en ce monde, et sa miséricorde est celle d'un être qui ne peut rien donner, comme le mot l'indique, que son coeur. C'est à lui que s'applique par excellence le mot de Nietzsche: "Je ne fais pas l'aumône, je ne suis pas assez pauvre pour cela".

On peut même interpréter dans se sens la distinction classique entre la justice et miséricorde de Dieu. Dieu est juste en tant qu'il à délégué sa puissance à inexorable nécessité: dans ce domaine, pas de faveurs, pas de passedroit; la gratuité est absent: l'effet, impitoyablement, suit la cause et chacun recuille jusqu'au bout le fruit de ses actes. "Vous ne sortirez pas d'ici que vous n'ayez payé la dernière obole..."

Mais Dieu est infiniment miséricordieux en tant qu'amour, dans son essence solitaire, hors de la création et de ses lois: "Je ne donne pas comme le monde donne." La justice est la loi de la création, la miséricorde est la loi de l'incréé. Deux lois absolumnet étrangères et irréductibles l'une à l'autre---et qui, cependant, s'identifient dans la mesure où on accepte, par respect et par amour de la seconde, d'obéir sans resriction à la première, car alors nécessité et liberté, temps et éternité, vie et mort ne s'opposent plus: "Tout est fruit pour moi de ce qu'apportent tes sainsons, ô nature!" Mais il faut subir jusqu'au bout la justice de Dieu pour rencontrer sa miséricorde.

Fonte: "L'ignorance étoilée" - Fayard