sábado, 26 de dezembro de 2009

Aforismos (VI)

Pudor e dissimulação

Estes dois sentimentos são parecidos pelas suas manifestações exteriores; mas como é diferente a sua origem íntima! O pudor tem medo da mentira, a dissimulação da verdade. O pudor recata-se ante os olhares impuros ou superficiais, ante a falsa luz. A dissimulação recata-se ante a verdadeira luz. O pudor receia que se enganem sobre o seu segredo, a dissimulação receia que se veja com execessiva clareza o seu segredo. O primeiro teme ser julgado segundo as aparências, a segunda tem medo de ser julgada segundo a verdade. Vítor Hugo resume tudo isto neste belo verso: A inocência vela-se e a falta esconde-se...

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Caminha no teu amor, mas não esperes que a alegria te siga passo a passo. A felicidade não é a sombra do amor. Quando o amor avança, ela parece por vezes dormir---ou recuar. Mas quando o teu amor tiver atingindo o seu fim que é Deus, a alegria unir-se-á de novo a ti num bater de asas e não te abandonará jamais.

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A verdadeira fidelidade consiste em fazer renascer indefinidamente aquilo que nasceu uma vez --- esses pobres gérmens de eternidade postos por Deus no tempo, que a infidelidade rejeita e a falsa fidelidade mumifica. Só o nascimento tem encanto, dizem os amantes da mudança; mas quem nao é capaz de renascer não chegou nunca a nascer, (há neste mundo mais abortos que nascimentos). O gesto de colher a flor é tão virgem como o de lançar o grão --- e o que não sabe esperar a colheita nada soube também da alegria e do amor do semeador: limitou-se a mover as mãos e embriagou-se com o seu gesto; não semeou...

Fonte: "O que Deus uniu" - Editorial Aster - Collecção Éfeso



quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Psicossomatismo

Um padre americano contou-me recentemente a história seguinte: recebera a visita de dois adolescentes num estado de extrema agitação. Julgavam-se possessos do demônio e pediram-lhe para os exorcizar. Como nunca lhe tinham feito tal pedido, começou por manifestar algum ceticismo sobre o que os jovens afirmavam. Compreendeu tudo, quando eles lhe confessaram que tinham assistido, alguns dias antes, à projeção do filme de horror intitulado "O exorcista".

"Acabei --- contou-me ele --- por praticar sobre eles, com a maior solenidade possível, os ritos do exorcismo e eles foram-se embora livres da sua obsessão. Mas pergunto a mim próprio se não se tratava de um simples fenômeno de auto-sugestão..."

Sugestão ou não --- respondi-lhe --- acho que procedeu muito bem, porque era verdadeiramente do diabo que se tratava. Não, sem dúvida, de um caso em que o demônio possuia diretamente uma pessoa, mas sim do espírito do mal que sopra através do mundo e penetra nas almas através dos meios de comunicação social. Em suma, um demônio sociológico, adaptado à era das multidões...

Digamos que estes jovens que se julgavam possessos tinham "somatizado" a emoção violenta provocada por um espectáculo de terror. O que nos conduz a reflexões mais gerais sobre o fenômeno da projeção no corpo das perturbações da alma, ao qual um dos nossos grandes médicos atribuía recentemente a origem de pelo menos cinquenta por cento das doenças consideradas orgânicas: asma, eczema, úlcera gástrica, cardiopatia, etc. Daqui a necessidade de os médicos que se preocupam com a eficácia saberem tanto de psicologia como de fisiologia.

Admite-se, portanto, cada vez mais, sob a pressão crescente dos fatos, que a alma é senhora do corpo, que o plasma, se assim posso dizer, à sua imagem, uma vez que perturba o funcionamento do corpo em função do seu próprio desregramento.

Mas qual é então a causa da má vontade ou da suspeita que tão facilmente incide sobre o bem fundado da influência contrária --- a influência da alma sobre os mecanismos e as pulsões do corpo, a fim de os regular e de os orientar em função de um ideal moral ou religioso?

Uma imensa corrente de opinião, que tem origem no culto aviltante do prazer e da facilidade, tende a repelir, como contrárias à plenitude do ser humano e como causas de recalcamento e de frustração, todas as formas de ascese e de disciplina que o espírito impõe à carne. É neste sentido que alguns condenam, em nome da espontaneidade e da criatividade da criança, a parte de aprendizagem e de disciplina que a educação comporta e que identificam, em matéria sexual, o ideal de castidade com recalcamento...

"É lesar os direitos do corpo impor a castidade aos adolescentes" --- dizia-me uma educadora, embebida até á medula de liberalismo moral e, por outro lado, eminentemente favorável ao aborto e à pílula.

Eis como lhe respondi: "O corpo não tem direitos, mas funções. É à alma que pertence coordenar essas funções com vista a realizar um equilíbrio ótimo entre a vida animal, a vida espiritual e as exigências do meio social. Que isso implica uma parte de violência em relação às pulsões carnais, é algo a que dou o meu acordo sem receio. E também concordo que certas castidades mal integradas provocam recalcamentos. Mas o recurso ao aborto ou à pílula, que você preconiza, como contrapartida da liberdade sexual, não é também um atentado contra esses famosos "direitos" do corpo? É a carne que reclama a interrupção da gravidez ou o impedimento da fecundidade? Pelo contrário, ela só quer levar até ao fim o processo natural que vai da união conjugal ao nascimento. Não, essas intervenções mutilantes procedem de um frio cálculo do espírito, ávido de tirar do corpo o máximo de gozo, sem ter em consideração as consequências naturais do prazer. Nesse caso, intervenção por intervenção, prefiro a da moral sexual..."

Assim, como quer que se proceda, nunca se escapa ao domínio da alma sobre o corpo. Todo o problema está em saber qual o sentido em que esse domínio se exerce.

Mens sana in corpore sano (alma sã em corpo são) --- diziam os antigos. Sabemos demasiado bem que as doenças da alma se repercutem sobre o corpo; por isso, é preciso velar pela saúde da alma, a fim de que ela tenha, em sentido contrário, as mesmas repercussões --- por outras palavras, substituir o psicossomatismo do erro e do mal pelo da verdade e do bem.

Fonte: viriatos.blogspot.com
Artigo original em francês:
"Le psychosomatisme" - Revista "Itinéraires" (Billets - 22 octobre 1976)

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Aforismos (V)

A terra tanto pode encadear, como libertar...

Não separe o homem o que Deus uniu. Não confies amigo, nos idólatras que quebram e conspurcam a unidade. Não acredites nos que separam a alma da carne e caluniam o corpo. Nem tão pouco nos que separam a carne da alma e mofam da pureza das alturas. Ama como todo o teu coração e com toda a tua alma. Há coisas em ti, enamoradas de voluptuosidades mais intensas ou de vôos mais fáceis, que pretendem desfazer a unidade. Bem sei. A tua carne demasiado pesada, idealizará uma beatitude atascada, e o teu espírito, demasiado pronto, um vôo de sonho e de nuvem. Mas, que importa? Religiosamente, incansavelmente, segura-te, tem mão em ti. Defende bem a tua imortal e frágil unidade. Ainda que seja para saciar a tua fome (mesmo de justiça e de amor), ou para repousar da tua grande fadiga, não permitas que nenhuma parte do teu ser proceda e avance sozinho. Se for necessário, caminha mais devagar. Mas sempre todo, em corpo e alma. Separada do espírito, a carne corrompe-se; e o espírito, separado da carne, empalidece, como flor desenraizada. E reduz-se a um fantasma.

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Ser e ter

Contenta-te com ter pouco, mas procura ser muito. A amplitude do teu ser dilatará até as estrelas o humilde canteiro do teu jardim. Não tires ao dia, senão com prudente economia, as possibilidades que dormem em ti. Deixa, neste domínio, largas zonas virgens e inexploradas. Em vez de te apressares a possuir, limita-te algumas vezes, muitas vezes mesmo, à impressão razoável do que "podes". Prefere a tua fome viva, a uma saciedade amortecedora. Cultiva a calma na realização das tuas esperanças. Não vês como são raras, na terra, as felicidades que sobrelevam em pureza à esperança? Deixa de colher muitos dos frutos que se te oferecem. Lembra-te dos malefícios que neles se podem esconder, um dos quais é privar-te da tua fome e da tua alma. Reserva-te para o único bem digno de ti, que é, não a extinção, mas a expansão do teu desejo.

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Obediência e servidão

Não se foge à obediência, senão para cair na servidão. Afliges-te, vendo de que é que os homens são escravos? Se queres a chave deste "mistério de abjeção", procura ver a quem é que eles fogem de servir.

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O homem não escapa à autoridade das coisas do alto, que o sustentam, senão para cair na tirania das coisas de baixo, que o devoram.

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Aquele a quem a alegria facilmente se oferece, jamais conhecerá o gosto das alegrias profundas. É fácil blasfemar contra as provações e proclamar o direito do homem à felicidade. Mas, que seria o mundo, se nele o homem encontrasse a alegria e o repouso ao nível da sua decadência? Que seria a terra, se nela o homem pudesse cair, sem se moagoar? Um coração onde a dor não mordeu, jamais poderá respirar o ar puro das alturas, o ar puríssimo do céu.

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Olha como as criaturas fervilham e se agitam! Que querem? Que procuram? Dir-se-ia que vivem sob a tentação fatal de abortar, de falhar estupidamente, em cada gesto, em cada pensamento, em cada palavra, em cada intenção. Falta-lhes a força necessária para deixarem amadurecer, dentro de si, a dor, a soledade, e mesmo Deus. Sente-se que ambicionam os meios mais rápidos, mais próximos, mais imediatos, de se desembaraçarem de tudo, sejam os braços de uma mulher, seja uma vida fácil, sejam os vãos atrativos da glória ou do poder. Não querem dar à luz na dor. Resultado? Abortam numa dor ainda maior: a dor estéril e sem sentido. De fato, o aborto nunca foi um parto. E o fruto arrancado à força deixa nas entranhas uma chaga difícil e, até, muitas vezes, impossível de cicatrizar.

Fonte: "A escada de Jacob" - Editorial Aster - Colecção Éfeso

sábado, 19 de dezembro de 2009

Aforismos (IV - Risco e prudência)

O homem deve escolher em todos os domínios, não entre a segurança e o risco, mas sim entre um risco aberto, fecundo, carregado de promessas, e um risco estéril, sem compensações nem saída. Na verdade, porque não temos neste mundo nível estável, a recusa de subir aumenta as probabilidades de cair. Ao risco fecundo da vida e do amor, a falsa prudência substitui por toda a parte o risco estéril do egoísmo e da morte.

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A falsa prudência e o culto do risco aparecem, em profundidade, como dois ramos divergentes, saídos do mesmo tronco. Não só sucedem, mas coexistem nas mesmas almas, fazem parte do mesmo estado de espírito. Sempre os que se recusam aos riscos saudáveis e necessários, são a presa mais certa dos riscos vãos e doentios; e os que procuram o risco extraordinário, o risco do luxo, são os que mais desarmados se revelam e os mais covardes em face dos riscos normais da vida.

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Dilema inevitável: porque imagem da divindade, o homem foi feito, ou para subir até Deus, ou para macaquear a Deus. Se não quiser ser a sua imagem, como filho, será o seu símio, a sua caricatura.

O falso sábio e o falso herói estão ambos emparedados no fingimento caricatural que fazem da Divindade. O primeiro repele o risco, por não crer que o todo do homem reside fora do homem, sem compreender que vale a pena perder-se, para se aperfeiçoar. Macaqueia aquele que, em si mesmo, é tudo, quando recusa ser tudo o qeu, com sua graça deve ser. Mas o segundo, correndo riscos gratuitos e sem objeto, procede igualmente como se nada existisse fora de si. Está sedento de uma evasão indefinida, mas vive cativo da sua embriaguez e dos seus caprichos. Perde-se, mas não para lá do estremecimento da própria alma e da própria carne, o que equivale a dizer que se perde sem nada dar. Em vez de oferecer a alma a um ser amado, "tenta-a", como diz Rimbaud, até à morte, no esforço absurdo de extrair dela um absoluto impossível. No jogo do nada, arrisca tudo, porque inconscientemente se julga Deus e cuida poder criar para sim um mundo novo, em troca do mundo perdido. É assim que ele mente ao ser do homem, ou seja a esta pobre natureza tão limitada e tão relativa, suspensa de fins que não criou e que não tem o direito de perder arbitrariamente.

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Em nenhum caso o risco deve ser indeterminado, por isso mesmo que em nenhum caso o risco é criador. Se o navio se arrisca ao naufrágio, é sempre em função do porto, já virtualmente atingido pelo pensamento e pelo desejo. O porto já existe. Não é o navio que o cria, quando se expõe ao risco de naufragar. Sempre e em toda a parte, na ordem da natureza, como na ordem da graça, o risco e a segurança correspondem-se.

Fonte: "A escada de Jacob" - Editorial Aster - Colleção Éfeso

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

A utopia

"Todo o bem real projeta algum mal: só um bem imaginário não projeta mal". Este pensamento de Simone Weil exprime uma verdade profunda. A linguagem corrente traduz a mesma ideia dizendo que "não há luz sem sombra".

Podemos sonhar e esperar uma felicidade absoluta ou uma perfeição sem mistura de imperfeições, mas não podemos alcançá-las. A vida real é sempre uma mistura de bens e de males e a melhor coisa tem sempre o seu lado negativo. Quem parte de férias para um pais meridional sonha com um céu sempre sem nuvens, com um mar tranquilo onde os banhos são uma delícia, com alimentos novos e saborosos, etc... Sem dúvida, encontrará tudo isso, mas experimentará também (e estas coisas não estavam previstas no seu programa de férias) os engarrafamentos de trânsito, dias de mau tempo e talvez mesmo algumas indigestões, devidas à cozinha exótica...

Os namorados pensam no casamento como numa lua-de-mel permanente e sem fim e pensam nos futuros filhos como numa alegre ninhada de pequenos seres encantadores e afetuosos. Na realidade, algumas cores escuras virão misturar-se a estas visões cor-de-rosa. Nem todos os casamentos são felizes e, mesmo nos melhores, há sempre uma parte de decepção e de provações. E quanto aos filhos trarão aos pais, juntamente com alegrias, um cortejo de preocupações e de dificuldades... O mesmo acontece com todas as outras circunstâncias da vida.

Por que razão há esta distância entre o que se deseja e o que se consegue na realidade? Muito simplesmente, porque os nossos desejos são indefinidos e as nossas capacidades de realização são muito limitadas.

Qualquer que seja a orientação que dermos à nossa vida, ela comportará sempre uma mistura de bem e de mal.

Por isso, a sabedoria consiste em escolher não só o maior bem, mas também o menor mal. E acontece, não raro, que a solução menos má ainda é a melhor. Schopenhauer dizia que os reis que começavam as suas proclamações por estas palavras: "Nós pela graça de Deus", estariam mais próximos da verdade, se escrevessem: "Nós, de dois males o menor". Com efeito, toda a autoridade comporta abusos e injustiças, mas o governo mais imperfeito ainda é preferível à anarquia.

A vida terrena é um caminho imperfeito para a perfeição que nos espera na eternidade. Este caminho torna-se rapidamente impraticável, se exigirmos dele a perfeição, que só será alcançada no termo. É neste sentido que lorde Acton dizia que "a sociedade se torna um inferno, na medida em que se quer fazer dela um paraíso". Se, ao pensar em casar, um homem sonha com uma esposa ideal e com filhos absolutamente sem defeitos, mais lhe vale ficar solteiro, para não ser um mau marido e um mau pai. E se, na vida profissional, uma pessoa não tolera nenhum fracasso nas suas empresas nem nenhum defeito nos seus colaboradores, todos os seus esforços ficarão estéreis. A experiência prova que não há homem mais insuportável que aquele que não sabe suportar nada.

São Tomás Moro descreveu numa obra célebre um Estado onde reinaria a justiça ideal e a felicidade absoluta. Mas situou esse Estado na ilha da Utopia, o que em grego significa o pais que não existe em parte nenhuma. Enquanto a nossa viagem terrena não chegar ao fim, devemos, portanto, tender para a perfeição, mas nunca pretender consegui-la.

Fonte: viriatos.blogspot.com

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Aforismos (III)

Fidelidade e disponibilidade

A incapacidade de criar novas afeições aparece aos olhos dos nossos velhos amigos como um penhor de fidelidade. Antes se deveriam afligir com isso, porque é o sinal de um esgotamento afetivo que não poupa a nossa dedicação por eles. O ser impotente para criar novos laços nem sequer está em estado de manter vivas as antigas afeições, e a sua "fidelidade" assemelha-se muito à do esqueleto pelo túmulo ou à da pedra pelo lugar que ocupa. Assim, uma terra muito esgotada para que novos grãos nela possam germinar, também não tem força para alimentar as plantas que nela se encontram. Quer se trate de coisas do espírito, quer das coisas do coração, a grande ilusão dos idólatras do passado está em ter desconhecido que o nosso poder de conservação é rigorosamente proporcionado ao nosso poder de renovação e de criação. Também a fidelidade não é mais do que sabedoria e virtude de embalsamador.

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Progresso

Ultrapassei isso, dizes-me. Repara em ti mesmo. Não se abandona aquilo que verdadeiramente se ultrapassa. O ponto donde se vem, liga-se àquele para onde se vai, como numa paisagem o primeiro plano está ligado ao horizonte, e o olhar abarca um e outro no mesmo abraço. É preciso que a tua jornada de amanhã germine na tua jornada de ontem; na verdade, é preciso, não que avances pela estrada de modo a que cada passo gere o esquecimento do passo precedente, mas a que o caminho entre em ti. Assim, o teu horizonte alargar-se-á sem que tenhas de abandonar nada nem de trair nada. Tudo o que tiveres ultrapassado estará presente e vivo em ti.

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Equilíbrio e equilibrismo

Esse homem tem sempre medo de se comprometer, de ir longe demais, o menor esforço fá-lo estremecer, não tem maior preocupação que a de manter em todas as coisas o "justo termo". Será isso equilíbrio? De modo nenhum: isso é equilibrismo. O homem equilibrado abraça e harmoniza em si as tendências opostas (a vontade e a paixão, a prudência e a audácia, a lucidez e o entusiasmo, etc.); é como uma montanha cujo equilíbrio implica a existência de duas vertentes. E essa amplidão de base permite-lhe, precisamente, como a montanha cujo cimo se perde audaciosamente no céu, comprometer-se a fundo, descurar os meios termos e as preocupações; pode ir muito longe e muito algo sem perigo para o seu domínio interior; é suficientemente forte e rico para ser equilibradamente excessivo. O equilibrista, pelo contrário, está isolado da vida e toda a sua habilidade se reduz a manobrar sabiamente para ficar de pé no meio do turbilhão de forças adversas que o agitam e que não pode dominar. O primeiro, evita a queda aderindo totalmente à vida, o segundo, mantendo-se exterior a tudo. Ambos se escapam às correntes perigosas: um, porque comunga com a própria fonte do rio, o outro porque sabe "conduzir a sua barca".

Fonte: "O pão de cada dia" - Editorial Aster - Colecção Éfeso

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Sur la tradition

On me reproche---ou on me loue---d'être traditionaliste. Je réponds: qu'est-ce qu'une tradition? Le mot vient du latin "tradere": livrer, transmettre. Dans ce sens très large, personne n'échappe à la tradition: nous sommes tous les héritiers d'un immense capital de doctrines, de moeurs et d'usages qui est la base et l'aliment de toute civilisation. Nous pouvons répudier une partie de cet héritage mais ce refus lui-même s'inscrit à la suite d'un courant issu du même héritage. Car il y a une tradition révolutionnaire aussi ancienne que la tradition conservatrice: le mythe de l'anticulture par exemple dont on nous rebat les oreilles traduit, non la négation pure et simple de toute culture, mais le conflit entre deux conceptions de la culture---phénomène qui se reproduit à chaque tournant de l'histoire. Jamais d'innovation absolue. Au jeune poète qui lui disait: "je ne veux rien savoir de ce qu'on a dit avant moi", Goethe répondit: "si je comprends bien, vous vous suffisez pour être un imbécile." L'animal seul n'a pas de passé, mais dans un autre sens il n'est que passé puisqu'il répète sans fin les gestes de ses prédécesseurs.

Il ne s'agit donc pas d'accueillir ou de repousser la tradition, mais de choisir entre les traditions. Quels sont les critères de discernement?

La vendetta fut longtemps en Corse une solide tradition. De même, en Chine, la "réduction" des pieds des petites filles. Ou encore dans certaines régions, la couvade, curieux usage qui consistait en ceci que l'époux se mettait au lit aussitôt après l'accouchement de sa femme et recevait les félicitations et les soins normalement destinés à la maman.

Si traditionalisme que je sois, la disparition de ces étranges ou cruelles contumes ne me cause aucun chagrin.

Par contre, je me sens invinciblement attaché aux traditions locales concernant la cuisine, le vêtement, les métiers, les arts, les rites sociaux et religieux, etc. qui sont le fruit d'une expérience et d'une sagesse séculaires et qui donnent au visage du monde habité cette inépuisable diversité sans laquelle l'unité n'est qu'uniformité et abstraction.

De telles traditions sont le terrain nourricier où s'enracine la plante humaine et dont l'érosion laisse celle-ci sans couler et sans vigueur.

Mais l'homme---Platon le disait déjà---est une plante enracinée à la fois dans la terre et dans le ciel. Au-dessus de toutes les traditions de temps et de lieux, il y a une sagesse immuable et éternelle, commune aux êtres supérieurs de tous les temps et de tous les lieux et qui, transmise de génération en génération, nous révèle simultanément les limites et la misère de l'homme et son inépuisable soif d'une perfection qui est au-delà de l'humain.

Cet héritage sacré de lucidité et d'espérance que le monde moderne, oscillant entre l'utopie et le désepoir, ignore ou repousse, je m'y accroche de tout ce qui en moi refuse le néant et le mensonge. C'est l'étoile fixe dont le reflet dans les eaux du temps devient bouée de sauvetage...

Parlera-t-on d'immobilisme? Bien sûr la tradition a ses dangers. Il y a la tradition-source et la tradition-gel, la seconde en général succédant à la première dès que se refroidit l'inspiration originelle et que la lettre étouffe l'esprit: on voit alors se figer les rites en formalismes, la vertu en moralisme, l'art en académisme, etc. Ce qui incline à renier la source alors qu'il suffit de briser la glace. Le vrai traditionaliste n'est pas conservateur: il sait trop bien que la stérilisation est le procédé commun à toutes les fabrications de conserves. La tradition n'exclut pas la liberté créatrice: elle la nourrit de toute l'expérience du passé et de l'éternel et elle l'oriente dans le sens d'un perfectionnement. Depuis quand l'étoile polaire entrave-t-elle la marche d'un voyageur.

Vaut-il mieux céder à la fièvre d'un changement sans but et sans garde-fous? "Mutantur, non in melius, sed in aliud" (on ne cherche pas ce qui est meilleur, mais ce qui est nouveau), disait le vieux Sénèque. La succession des modes, le culte des "anti", la réformite aiguë (voir par exemple la ronde effrenée des lois sur l'ensignement...) vérifient scandaleusement ce diagnostic. En fait l'agitation n'est que le revers de l'immobilisme: la feuille morte qui voltige à tous les vents n'a aucune supériorité sur la pierre inerté.

Un autre reproche: l'attachement stérilisant au passé. Je répondrai que nous ne pouvons plus rien pour le passé et que celui-ci ne m'intéresse qu'en fonction du présent et du futur. Quand je vois pourrir les racines d'un arbre, je pense surtout aux fleurs et aux fruits qui avorteront demain faute de sève. C'est l'avertissement que donnait déjà Chateaubriand aux novateurs écervelés de son temps: "Gardons-nous d'ébrandler les colonnes du temple: on peut abattre sur soi l'avenir."

Fonte: Revista "Itinéraires" (Billets, 11 juin 1976)

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Os paraísos artificiais

A morte de duas adolescentes, vítimas da droga --- uma por injeção mal doseada, a outra indiretamente, por suicídio --- suscitaram recentemente abundantes comentários em todos os jornais franceses. Há um fato que atrai principalmente a atenção: o uso dos estupefacientes começa a fazer sentir as suas destruições nas camadas modestas da sociedade, que pareciam até há pouco imunes a este flagelo.

Os jovens são os mais atingidos, o que ainda põe mais sombras negras no quadro. Um jornal publicou os resultados de um inquérito realizado entre os colegas das vítimas. À pergunta: "Porque é que te drogas?" foram dadas, entre outras, estas respostas: "Não temos gosto em nada, tudo nos deixa indiferentes" e (são palavras de uma jovem de 18 anos): "No meu estado normal, vejo as coisas tal como são; uma vez drogada, vejo-as como quereria que elas fossem". A infeliz jovem, sem o saber, repetiu, quase palavra por palavra, a célebre frase de Bossuet: "A pior desordem do espírito consiste em ver as coisas, não como elas são, mas como se quereria que elas fossem". E, no entanto, Bossuet falava da influência das paixões entregues a si mesmas e não de uma desordem artificialmente provocada e mantida...

Quem se droga, fá-lo por sentir aborrecimento. Mas porque sente assim aborrecimento? Tenho debaixo dos olhos um artigo que diz substancialmente o seguinte: Como é que os jovens, hoje, podem e ousam aborrecer-se? Nunca os homens dispuseram de um tão grande leque de possibilidades: maior liberdade de escolha da profissão, graças à generalização e à facilidade dos estudos e, no domínio das distrações, leituras, espectáculos, televisão, esportes, viagens, etc. E isto diz-se particularmente das moças, anteriormente limitadas ao piano, aos bordados, ao "tricot" ou à cozinha, com raras saídas sempre acompanhadas, as quais gozam hoje de tanta liberdade como os rapazes. Depois, numa evocação da encantadora cidadezinha mediterrânica de Bandol, onde passava férias o grupo de jovens drogados a que pertencia uma das vítimas, o autor do artigo conclui: Será que não há mais nada para fazer do que drogar-se, nesta bela região onde tudo concorre para a felicidade dos veraneantes --- a doçura do clima, a beleza das paisagens, as oportunidades de praticar todos os esportes terrestres e náuticos, etc.?

Daqui o paradoxo: era quando os homens tinham mais razões objetivas para se aborrecerem que eles se acomodavam melhor a uma existência aparentemente insípida e é quando eles têm todas as possibilidades de se distraírem que se aborrecem mais. A explicação é simples. O aborrecimento é como o enjôo. O que faz o enjôo não é a falta de apetite é a saciedade. O aborrecimento, como o enjôo, é uma toxina segregada pela abundância mal assimilada.

A pior miséria do homem não é não ter nada, é nada desejar. Então, é levado a procurar um remédio para a falta de apetite, não no jejum que lhe devolveria o gosto dos verdadeiros alimentos, mas em excitantes artificiais cujo efeito se atenua rapidamente, porque, não correspondendo a nenhuma necessidade natural, agravam em profundidade o mal que aliviam à superfície o que exige o emprego de meios ainda mais corruptos e mais nocivos. Assim se realiza a "escalada" da falsa evasão até ao recurso à droga, termo normal desta fuga para o irreal, onde o homem encontra um último refúgio contra o aborrecimento na dissolução da sua própria personalidade. Se, na forte expressão do catecismo, a condenação eterna consiste em perder a sua alma, os paraísos artificiais são já a prefiguração do inferno.

Demasiado bem-estar, demasiadas facilidades, demasiados tempos-livres são --- dizem os pessimistas --- a explicação desta decadência. Se fosse verdadeiramente assim, isto é, se o esforço das gerações precedentes que forjaram o instrumento prodigioso da prosperidade material tivesse de levar forçosamente a este legado envenenado; se o que se chama justiça e promoção sociais, ideal democrático e civilização de massas consistisse em difundir em todas as camadas da sociedade vícios anteriormente reservados aos ricos e aos ociosos; se o homem só tivesse a possibilidade de escolher entre os tormentos da miséria e o aviltamento pelo aborrecimento então, justificar-se-iam em absoluto as perspectivas mais sombrias do futuro da nossa civilização.

Não penso que tenhamos demasiado bem-estar e demasiados tempos livres. O que falta a muitos é o bom modo de utilização desse bem-estar e desses tempos livres. A civilização moderna cultiva todos os nossos desejos, mas negligencia ensinar-nos o bom uso dos bens que desejamos. Ela apresenta-nos conjuntamente o necessário e o supérfluo, o útil e o prejudicial, o melhor e o pior, deixando-nos a responsabilidade da escolha. Trata-se de digerir esta abundância e de merecer esta liberdade. Ora, toda a boa digestão implica duas condições: em primeiro lugar, o discernimento, que consiste em saber escolher o que se come, e em segundo lugar a moderação, que consiste em não comer demasiado. O apetite cego produz o enjôo --- depois do qual a doença e o médico não tardarão a impor-nos um regime incomparavelmente mais severo...

Aqui reside, com efeito, o fundo do problema: se não soubermos aliar a abundância exterior com a disciplina interior, a própria abundância nos será subtraída, porque a prosperidade econômica só pode subsistir e crescer com o trabalho e com os bons costumes. E quanto à disciplina, seremos reconduzidos a ela pela força exterior da tirania, consequência invariável da desordem e da libertinagem, a qual será exercida por implacáveis médicos do corpo social, senão por cirurgiões sem escrúpulos, que não hesitarão em nos amputar deste precioso órgão de que fizemos mau uso: a liberdade.

Fonte: viriatos.blogspot.com

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Aforismos (II)

Ser e ter

Drama do ser separado. Não tem compenetração orgânica com coisa alguma, tudo lhe é exterior, tudo lhe é uma carga. Aqui as noções de exterioridade e do fardo entrecruzam-se: um fardo é-nos sempre exterior. Tudo o que levamos em nós, tudo o que somos (quer dizer, tudo o que amamos de verdade) não poderá ser carga para nós, ou pelo menos é uma carga alada que nos impele. O corpo não sente o peso dum órgão e nada nos é mais leve que essa enorme massa da atmosfera que nos esmagaria se não estivesse misturada com a fonte da nossa vida. O mesmo quanto a um ser ou a um dever a que estamos religados vitalmente... Mas tudo se torna carga para aquele a quem tudo é estranho, até a sua própria vida. Ser carga para si próprio; não há expressão mais adequada para designar o homem a quem a recusa do amor tornou exterior à sua própria essência.

Inúmeras locuções correntes traduzem esta oposição entre a interioridade do amor e a exterioridade do fardo. Dizemos dum ser amado: levo-o no meu coração. Assim não lhe pesa. Mas daquele que não amamos, e cuja presença nos pesa, dizemos, levo-o às costas.

* * *

Não é a lei do menor esforço que nos guia, é a lei do menor valor. A nossa energia é inversamente proporcional à pureza dos motivos que nos levam a agir. Seríamos todos uns heróis se puséssemos ao serviço da verdade e do bem a força que diariamente despendemos na procura do mal e da mentira, se fizéssemos por ser, o que fazemos, tão facilmente, tão espontaneamente, por parecer.

Fonte: "O pão de cada dia" - Editorial Aster - Colecção Éfeso

domingo, 6 de dezembro de 2009

Aforismos

"O jugo que se escolhe, ainda é liberdade" (Lamartine). --- De fato, a liberdade é precisamente isso. Longe de se confundir com uma impossível exigência de autonomia absoluta, a liberdade, no ser criado, só se pode conceber como faculdade de escolher o próprio jugo e, em última instância, de escolher entre o senhor que nos engrandece, e o senhor que nos destrói. De fato, a mesma natureza da liberdade implica a ameaça da escravatura. A possibilidade de se abrir a tudo, pela aceitação, tem como contrapartida a possibilidade de, por mera recusa, se fechar a tudo. Entre as realidades criadas, só a liberdade possui este exorbitante poder de se destruir a si mesma. É como uma sala com duas saídas. Uma abre para Deus; a outra, para o nada, --- e é necessário sair! Em última análise, o homem não tem a escolha senão entre o amor e o suicídio. Ou a doação de si mesmo, ou a morte. Por isso, considerada nas suas possibilidades negativas, a liberdade é, por excelência, a faculdade do suicídio...

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Vazio interior

A despeito de todas as aparências em contrário, o homem gasta-se na medida em que o ritmo acelerado da corrida se substitui nele ao ritmo lento do crescimento. Ora, o que por toda a parte se verifica é que, no nosso tempo, o progresso consiste mais em correr, na linha horizontal, do que em crescer, para o alto.

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Progresso?

Desde há um século para cá, o mundo evolui a passos de gigante. Tudo se precipita: o vento do "progresso" fustiga-nos a cara. Mau sintoma: a aceleração contínua é mais própria das quedas do que das ascensões.

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Sabedoria medieval e pensamento moderno

Na Idade Média, não se conheciam todos os segredos da fechadura humana e cósmica, mas possuía-se a chave, que é Deus. A partir de Descartes, tem-se explorado afincadamente a fechadura, que uns e outros vão tentando descrever de modo mais ou menos minucioso. Mas o pior é que... perderam a chave! O mundo e o homem tornaram-se, para o pensamento moderno, fechaduras sem chave. De resto, hoje, o pensamento, no seu conjunto, nem já se preocupa com a natureza ou com a existência da chave. A única preocupação, diante de uma porta fechada, consiste no modo, não de a abrir, mas de a examinar!

Fonte: "A escada de Jacob" - Editorial Aster - Colleção Éfeso

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Alma gêmea

"O meu coração mo tinha dito: toda a alma é irmã de uma alma...o seu destino, cedo ou tarde, é encontrarem-se" (Lamartine)

Mito estúpido e venenoso, o da alma irmã criada especialmente para cada um de nós e que é suficiente encontrar para realizar na terra o paraíso do amor. Sem dúvida, um mínimo de harmonia pré-estabelecida é indispensável à eclosão de um grande amor, mas este mínimo de consonância entre duas almas pode ser realizado a priori por centenas de mulheres em relação a um homem e por centenas de homens em relação a uma mulher. É preciso toda a candura da juventude e uma completa ignorância da vida para desconhecer esta verdade. É preciso também muito orgulho: julgar-se único e solitário como um deus a quem só um outro deus, igualmente único e solitário, pode compreender e amar.

Um só Tristão para uma só Isolda: divinização do amor humano que, como todas as idolatrias, conduz em linha reta à destruição do ídolo. D. João é filho de Tristão e parece-se tremendamente com o seu pai. Ambos se encontram cativos do mito do amante único e perfeito, preparado de antemão pelo destino: um imagina possuí-lo, o outro procura-o. Ambos crêem no absoluto, no paraíso do amor, mas num paraíso gratuito e terreno, criado pelo mero encontro e pela simples presença.

Na realidade a harmonia única e insubstituível entre duas almas, não é mais, na hora do encontro, que um começo indeterminado no meio de uma ganga de ilusão. É da comunhão quotidiana, das alegrias, das dores, dos esforços e sacrifícios partilhados que ela tirará depois a sua forma precisa e imutável. "A alma irmã", "a metade de nós mesmos", não é dada a priori, mas a posteriori: são o nosso amor e a nossa fidelidade que a criam. Ela poderia ter sido outra, mas, depois da prova do amor, ela só podia ter sido essa. A esposa única merece-se. A verdeira monogamia, isto é, a fusão de dois destinos, encontra-se mais no termo do que na origem do amor.

Fonte: "O que Deus uniu" - Editorial Aster - Colecção Éfeso