terça-feira, 26 de julho de 2011

O Um e o único

A unidade não é a confusão; a ruptura dos limites não arrasta consigo a abolição das diferenças. Tudo será distinto na eternidade, mas nada será separado. Eu serei eu mais profundamente que neste mundo, e tu serás tu; cada um será ele próprio, e todos juntos só farão um. Porque o Um não anula o único: fixa para sempre os traços irredutíveis dele e o retorno à unidade será a afirmação da diferença.

Porque a distinção e a unidade procedem do mesmo princípio (a Ideia, na linguagem de Platão, e a Forma na de Aristóteles) que confere a cada ser a sua diferença específica e individual, bem como a sua capacidade de comunhão. Estes dois atributos são inseparáveis: quanto mais a diferença se afirma, mais a capacidade de comunhão se alarga. Se seguirmos a escala que vai do mineral ao homem, veremos os seres tornarem-se cada vez mais originais e insubstituíveis e, correlativamente, mais susceptíveis de relação com o resto do mundo. No grau ínfimo, não há diferenças nem relações entre dois graõs de areia. No mais elevado, os seres diferenciam-se muito, mas estão abertos a tudo o que os cerca, pelo conhecimento e pelo amor. No vértice, Deus é ao mesmo tempo o mais distinto e o menos separado dos seres: a nada se assemelha (quis similis Deo?) e está em toda a parte.

A matéria, ao contrário, é o princípio da confusão e da separação. O seu carácter amorfo e indeterminado faz com que ela se possa dividir até ao infinito e que todas as suas partes sejam homogêneas.

Quereis exemplos? Duas pessoas que se amam são irredutíveis uma à outra e, ao mesmo tempo, inseparáveis no seu amor, ao passo que duas máquinas fabricadas em série são perfeitamente semelhantes e perfeitamente separadas: a sua diferença é puramente espacial e numérica. Comparai dois amantes unidos e dois automóveis do mesmo tipo: naqueles, a comunhão na diferença; nos últimos, a separação na identidade. Nada do que é complementar (isto é, feito para as unidades) é permutável e tudo o que não é permutável é necessariamente separado.

É infelizmente para a segunda fórmula --- a do indivíduo separado e impermutável --- que parece orientar-se a evolução das sociedades humanas. O nivelamento universal, anulando as diferenças entre os homens, anula também a verdadeira unidade social, mas cria, ao mesmo tempo, dado que a morte é infinitamente mais dócil e maleável que a vida, mil possibilidades de unidade fictícia, rápida e transformável; a que impõe a homens esvaziados de alma e de liberdade o jugo da força brutal, ou a influência apenas mais subtil da propaganda.

Fonte: "O olhar que se esquiva à luz" - Livraria Figueirinhas - Porto, 1957

quarta-feira, 13 de julho de 2011

La sagesse et la grâce

La sagesse suffit à me persuader de mon néant. Mais la grâce seule peut me donner la force d'agir, sachant que je ne suis rien, avec autant d'énergie que si j'avais l'illusion d'être quelque chose. Après avoir expulsé l'orgueil et tous ses mirages, elle le remplace par une présence sacrée --- la sienne --- qui nous rend en eau du ciel et de source tout le contenu de la citerne vidée. Car le sage est vide de lui-même, mais le saint est plein de Dieu.

Oui, la sagesse humaine suffit à nous vider de nous-mêmes et, dans ce sens, les stöiques ne nous trompent pas: la froide contemplation du point infinitésimal que j'occupe dans l'espace et dans le temps, le parallèle impartial entre ma personne et ces millions d'êtres humains qui, avant moi, sont nés par hasard et sont morts en vain, le retour lucide sur mon passé où de si brefs intervalles séparent la flamme de la cendre et la conception de l'avortement --- tout cela --- qui ne dépend que de la direction et de la loyauté de mon regard, c'est-à-dire de moi-même --- est plus que suffisant pour me vider de ce sang impur qui nourrit "l'orgueil de la vie". La grâce provoque la même hémorrragie. mais elle opère em même temps une transfusion de sang divin: {jam non ego vivo, Christus in me vivit}. --- Et là je ne peux que recevoir passivement. Pour saisir concrètement la différence, comparons l'humilité exsangue d'un Marc Aurèle qui repose sur la conviction philosophique du néant de tout ce qui passe et l'humilité brûlante et radieuse d'un François d' Assise ou d'un Jean de la Croix qu'alimente le don gratuit d'une vie surnaturelle.

Le danger pour les chrétiens --- et Gide l'a perçu clairement en analysant l'état d'âme de ses amis convertis --- c'est que l'hémorragie humaine et la transfusion divine soient l'une et l'autre incomplètes, de sorte que le mélange de l'ancien et du nouveau sang confère aux passion du vieil homme une espèce de justification surnaturelle qui les fait sortir de leurs orbites. Là où la grâce n'a pu éliminer le moi, elle le dilate sans mesure. Il n'y a qu'un pas entre cette constatation vraie: Dieu habite en moi, et cette prétention délirante: tout ce qui est en moi est divin. Et par-là, le saint manqué se situe très au-dessus du stöicien réussi. D'où il faut conclure --- sauf peut-être pour les âmes naturellement très pures --- à la nécessité d'une alliance entre la sagesse et la grâce.

Fonte: L'ignorance étoilée - Fayard

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Fidelidade e traição

É um facto de experiência corrente que os contratos, os juramentos, os votos mais solenes, são em regra aqueles que menos se respeitam (refiro-me ao respeito interior e não ao comportamento social que se limita a "salvar as aparências da fidelidade"). Eu noto aí, antes um encadeamento lógico do que uma ocasião de escândalo. Não se fazem promessas senão na medida em que nos sentimos mais ou menos exteriores àquilo que se promete --- razão esta por que traímos tantas vezes!

Quando dois seres estão intimamente unidos um ao outro, não têm necessidade de jurar fidelidade mútua, porque esta se confunde com a sua existência. Pode conceber-se alguma coisa de mais ridículo do que uma mãe jurar a seu filho que o há-de amar sempre?

O voto e o juramento, por isso mesmo que fazem apelo a um princípio exterior à comunhão e ao amor, contêm já um gérmen de traição. O homem quanto mais necessidade tem de se apoiar numa promessa, tanto mais se sente inclinado para a renegar. Empenha o futuro com os lábios, porque não leva a eternidade no coração.

Fonte: "O olhar que se esquiva à luz" - Livraria Figueirinhas - Porto, 1957