quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Juventude e violência (IV - Final)

VIOLÊNCIA, FORTALEZA, ANTI-CONFORMISMO

A virtude da fortaleza implica os dois traços seguintes: o domínio de si e a independência com relação às opiniões e arrebatamentos da multidão (si omnes, ego non: se todos, eu não --- proclama uma velha divisa aristocrática). Ora, todos os fenômenos de violência que nós relacionamos se situam nos antípodas dêsse duplo ideal: seu caráter passivo e gregário salta aos olhos. Êles procedem ou dum abandono anárquico aos impulsos elementares ou (e essas duas reações são estreitamente ligadas) duma docilidade mecânica para com os movimentos da multidão, naquilo que êles têm de mais efêmero e vão. Há um parentesco profundo entre a ovelha negra e os carneiros de Panurgo. E é em função dessa dupla carência que êsses seres, tão largamente abertos às modas, às ideologias e a tôdas as correntes da história que no fundo não levam a nada, se refugiam automàticamente no individualismo mais tacanho e cego quando se cogita das grandes questões concernentes à natureza do homem e da sociedade: a profissão, a família, a pátria, a religião. Êsse jovem "insensível" que ostenta uma virilidade de fachada nos lugares de diversão vive agarrado a seus pais e se comporta como um "eunuco" diante das dificuldades da existência. Êsse descabeçado que maneja o volante com a inconsciência da criança montada num carrinho de brinquedo dá mostra da mesma fraqueza na vida real: dir-se-ia que êle enfrenta todos os riscos para melhor fugir a tôdas as responsabilidades. E eu não quero evocar aquêles franceses de ontem que, ajoelhados diante da Trindade do médio eleitor (carro, férias, televisão), talvez se envergonhassem de ignorar o último filme de Brigitte Bardot, mas se quedaram insensíveis diante da agonia física e moral de seus irmãos da Argélia.

Essa afinidade entre a violência vazia e a inconsciência frente às realidades nada tem que deva surpreender-nos. Há entre a violência e a frouxidão uma diferença de grau e não de natureza. Um pneu estufado não tem outra superioridade senão a de estar cheio de vento. E o menor acidente exterior basta para pô-lo em evidência. Assim, a violência cega e a frouxidão se revezam freqüentemente num mesmo indivíduo, conforme os humores e as circunstâncias. São Pedro comprovou à sua custa essa lei psicológica quando, após desembainhar a espada contra os servos do Sumo Sacerdote, renegou miseravelmente seu Mestre...

Tôda esta conversa não deve ser interpretada como uma condenação absoluta e universal da violência sob tôdas as suas formas. Santo Tomás nos ensina que o exercício do "irascível" pode ser legítimo e benéfico na medida em que se obedeça à razão. Doutro lado, a virtude da fortaleza implica, em certas circunstâncias (educação das crianças, guerra justa, repressão da delinqüencia etc.) o uso da violência. A violência sadia é aquela que pomos ao serviço do bem e que dirigimos contra o mal. E, antes de tudo, contra o mal que está em nós; enquanto a violência que nós exercemos sôbre os outros é freqüentemente negativa e maléfica. Não é por acaso que a expressão "violentar-se" é quase sempre entendida num sentido favorável. É por aí que se precisa começar: como poderemos nós modificar para melhor o que quer que exista no mundo e entre nossos semelhantes, se não soubermos modificar-nos a nós mesmos?

Tal é o "caminho da liberdade" que se abre aos jovens. Essa liberdade --- tão exaltada em palavras e tão achincalhada nos fatos --- não se desenvolve nem pela anarquia individual nem pelo mimetismo social, mas pelos esforços e sacrifícios que uma obediência ativa às leis eternas exige. É necessário, com efeito, mais liberdade para fazer o bem que para sucumbir ao mal, para afirmar um ideal que para ceder a um impulso. O alpinista que escala uma montanha faz a cada instante uma opção para não cair e concentra tôda sua energia nesse objetivo, mas absolutamente ele não tem necessidade de opção nem de energia para deixar-se rolar no abismo.

E quanto aos jovens que apreciam a luta e o risco e que sentem borbulharem dentro de si instintos revolucionários, que êles se tranqüilizem: a solução que lhes propomos é a menos confortável. Pois no mundo em que vivemos --- neste mundo que tem por regra o desregramento, em que os paradoxos se tornaram preceitos e os escândalos convenções, em que as pressões sociais funcionam no sentido da destruição da sociedade, em que as instituições repousam na violação das leis não escritas; --- diante dessa ordem estabelecida que é a negação da ordem eterna, êles encontrarão fàcilmente a oportunidade para exercitar suas faculdades de combate, pois o anticonformismo e o respeito aos comandos imutáveis vão hoje de braços dados, e aquele que quiser obedecer à razão e a Deus encontrará mais obstáculos e se exporá a mais perigos que aquêle que delira com o seu século e se ajoelha diante dos seus ídolos. Neste mundo transtornado, o combate mais duro e o maior risco estão do lado dos defensores da ordem contra o caos e da sabedoria contra a loucura.

Fonte: Revista Hora Presente (número 9 - Ano III, maio de 1971)

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Juventude e violência (III)

RAIZ METAFÍSICA DA FUGA NA VIOLÊNCIA

Se procurarmos a raiz metafísica dessa fuga na violência, nós a encontraremos no declínio da vida interior e dos valôres especulativos, donde provém em linha reta, os dois grandes pecados do mundo moderno: a idolatria da ação exterior e o culto da novidade.

A idolatria da ação. É um elogio incondicional dizer de alguém que é um homem de ação ou que é "dinâmico". Só que nos esquecemos de precisar qual o gênero de ação ou a qualidade de fôrça de que se trata.

O culto da novidade. O valor se define não em relação a modelos transcendentes (bem ou mal, verdadeiro ou falso, belo ou feio), mas em têrmos de "para a frente" e "para trás". Sêneca, falando dos representantes da "nouvelle vague" romana, já escrevia: "mutantur non in melius, sed in aliud"; êles procuram não o que há de melhor, mas o que há de nôvo.

Não há nada mais fácil de se admitir do que êsses dois desvios conterem o germe e a justificação do espírito de violência.

Comecemos pelo ativismo. Tôda ação, visando à modificação do mundo exterior e à afirmação de nosso poder sobre os sêres e as coisas, não será sadia e fecunda se não fôr iluminada e guiada por uma luz interior que se situa acima do tempo. O homem que não age seguindo um modêlo ideal cai na mania da ação pela ação: o movimento não tem mais outro fim que êle mesmo. Afinal, a ação se torna como uma droga: um excitante para o "eu" (no sentido pascaliano do têrmo) e um narcótico para a alma. Não há mais fim e, por conseguinte, não há mais critério.

Podemos dizer outro tanto da inovação e da moda. A novidade não é nem um bem nem um mal em si mesma; ela é bem ou mal conforme nos aproxime ou nos afaste de nossa própria natureza e de nosso destino. Mas, se êsse critério se esvanece, onde encontraremos nós a justificação para uma mudança senão na própria mudança?

E eis aí a porta aberta à violência sob tôdas as suas formas. Aquêle que é incapaz de se afirmar por uma ação positiva e criadora tem sempre o recurso de se refugiar numa ação negativa e destruidora. A violência é o melhor alibi do impotente e do mal sucedido. É, com efeito, mais fácil estuprar uma jovem do que construir um lar, pisar um acelerador do que dirigir a existência pelas rudes avenidas do trabalho e do devotamento, massacrar formas e côres do que pintar uma tela de Wermer ou de Velásquez. Mutilar, devastar, destruir dão, sem grande custo, a embriaguez da fôrça e podem mesmo conduzir à glória --- essa falsa glória publicitária que se prende hoje ao escândalo e ao crime mais do que à beleza e à virtude. Renovando a façanha de Eróstrato, o jovem americano que acaba de massacrar covardemente seis môças responde aos inquisidores: "eu quis ser alguém". Cito um caso limite, mas perfeitamente lógico. Num século em que o dinamismo e a eficácia se tornaram os valôres supremos, os fautores da violência fôrçam até às últimas conseqüências a lei dum mundo sem lei --- tanto mais que neste mesmo século em que a renúncia e a esperança são cada vez menos ensinadas e praticadas, em que cada um quer auferir quanto antes os resultados de sua ação, os efeitos da violência são mais satisfatórios, por seu caráter imediato e espetacular, do que os dum trabalho positivo e de largo fôlego. O efeito dum sôco inscreve-se instantaneamente no rosto de quem o recebe, mas longos meses têm de decorrer entre a semeadura e a colheita. Demais, a colheita está sempre ameaçada, é incerta, ao passo que a violência atinge infalivelmente o seu objetivo.

Provindo duma erosão da substância humana, o recurso à violência se faz acompanhar necessariamente duma queda vertical da liberdade. Fala-se, sem cessar, de evasão, de libertação. Mas, evadir-se de onde? Libertar-se de que? A fôrça das coisas é una como Deus é um: não há nada que possa ser estranho ao universo e às suas leis. Langlade-Demoyen faz notar muito justamente que, em nosso mundo, encontramos cada vez mais revoltas e cada vez menos liberdade. Nada mais normal: é contra a liberdade que se revolta! Pois a verdadeira liberdade é antes de tudo obediência a uma ordem ao mesmo tempo interior e superior ao homem: parece Deo libertas est, dizia Sêneca. Basta ver de que miseráveis conformismos são prêsas êsses jovens que não cessam de berrar e de imitar os outros; basta ver por que servilismo êles trocaram a disciplina; basta ver a que modas infelizes e nati-mortas êles imolam os costumes seculares. É ser livre repelir a tradição e agitar-se a qualquer impulso da propaganda, gritar atrás de Johnny ou deixar crescer o cabelo como Antoine, ler "Playboy" e repudiar os clássicos? Não quero intrometer-me em domínios muito diversos mas ao mesmo tempo afins no que concerne à influência da moda: senão eu poderia falar dêsses católicos de vanguarda que devoram, sem uma sombra de senso crítico, vagos trechos de Teilhard de Chardin e torcem o nariz diante de Santo Tomás, ou para os quais a obsessão da pílula substitui a meditação sobre os mistérios da fé.

Não resisto ao prazer de citar as seguintes linhas em que Bossuet descreve admiravelmente essa instabilidade na escravidão que dá a ilusão da liberdade. Bossuet fala do "mundano": "Êsse movimento perpétuo que lhe acarreta mil dificuldades não deixa de satisfazê-lo pela impressão que lhe dá de uma liberdade errante. Como a árvore que o vento parece acariciar brincando com suas fôlhas, embora êsse vento não a acaricie sem agitá-la e jogá-la ora de um lado ora do outro, com grande inconstância, vós diríeis que se alegra com a liberdade de seu movimento, igualmente, embora os homens do mundo não tenham liberdade verdadeira, sendo quase sempre constrangidos a ceder aos diversos usos que os impelem como o vento, êles julgam, contudo, gozar duma certa liberdade e paz, fazendo vagar de um e de outro lado seus desejos confusos e incertos."

Continua ...

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Juventude e violência (II)

O "INSENSÍVEL": UM FROUXO QUE BANCA O FORTE

Esse gosto pela violência não deve ser interpretado como manifestação anárquica duma vitalidade incontida. Foi assim, talvez, em certas épocas, como na Antiguidade ou na Renascença, quando a violência se aliava freqüentemente ao poder criador. Salvo raras exceções, trata-se mais, hoje, de compensar uma fraqueza que imita os sentimentos e os gestos da fôrça. O "insensível" é um frouxo que banca o forte: suas manifestações de violência são como a planta espinhosa que brota num solo ingrato, ou como a erupção de um vulcão em vias de se extingüir.

Note-se que essa epidemia de violência causa estragos precisamente numa época em que os homens sedentos de segurança automática, se encontram cada vez mais desarmados para enfrentar os percalços e os deveres duma existência normal. Quanto mais êles se expõem ao risco artificial e estéril, tanto mais êles necessitam de segurança contra o risco natural e fecundo.

Se retomarmos, um a um, os exemplos citados acima, encontraremos em todos os mesmos sintomas (e os mesmos disfarces) duma fraqueza ávida de sensações fortes.

O fenômeno da turma explica-se pela inaptidão de estabelecer verdadeiras amizades e de criar verdadeiros grupos. O desmoronamento das estruturas liberta o elemento bruto. Sêres incapazes de se unirem tendo em vista um fim comum positivo, isto é, visando a alguma coisa, juntam-se contra isto ou aquilo, e sua revolta, convertida em lei e fim supremo, não rende nada.

A sexualidade? Êsses adoradores desenfreados da carne são, quase sempre, incapazes não apenas de amar profunda e duradoiramente, mas até de sentir uma paixão autêntica. "O amor está tanto mais doente quanto nossa civilização se tornou mais afrodisíaca", dizia Bergson. A sexualidade --- reduzida a seus componentes elementares (e por isso mesmo já desnaturada, pois o homem pode imitar tudo do animal, menos a inocência dos instintos) --- não une mais, não vincula mais; é uma troca à flor da pele, um "bem de consumo" que não exige nenhum investimento. Ora, a vida sem preocupações foi sempre negócio dos pobres, não dos ricos.

O que prova o caráter artificial dessa exaltação do sexo é que ela coincide com o desaparecimento progressivo das diferenças sexuais. Cruzei outro dia com um casal que ia no meu caminho: a môça, de calças compridas, traços rudes e cabelos curtos; o rapaz, com imensa cabeleira ondulada. Tratei de senhor a môça e de senhorita o rapaz e quando me tiraram do engano, devo ter feito grande esfôrço para dar crédito às suas palavras. Pensei que no têrmo da decadência, a confusão dos sexos estivêsse reproduzindo, a seu modo, o andrógino primitivo de Platão...

Irei mais longe: êsse frenesi do sexo, para muitos de nossos contemporâneos, não chega até os atos. É mais uma obsessão do espírito que uma necessidade do corpo: exerce-se (se assim posso expressar-me) por procuração: inúmeros indivíduos buscam no relato ou no espetáculo dos amôres dos outros (quer se trate de personagens reais ou fictícios) uma concepção imaginária para a esterilidade de sua própria existência. Assim se explica o sucesso desmesurado do erotismo na literatura (aí se compreendendo as numerosas produções pseudo-científicas consagradas aos problemas sexuais) e em todos os outros meios de informação: cinema, televisão, publicidade, etc. Essa excitação cerebral não conhece limites porque não tem realidade. Tudo é possível, com efeito, no plano do sonho e da ficção. Tal como as proliferações cancerosas em tôrno do órgão que elas próprias devoram, o erotismo representa a degenerescência hipertrófica da sexualidade normal. Parodiando a frase célebre de Pascal, um jovem filósofo americano escreveu que, no mundo moderno, "a sexualidade tem sua circunferência em tôda parte e o seu centro em nenhuma".

A mesma confusão de desespêro e impotência se encontra no gosto pelos esportes violentos e, intensamente, no delírio automobilístico que faz, todo ano, milhares de vítimas entre as quais inocentes que pagam pelos pecadores. O simples fato de se tornar necessária, para demonstrar a exaltação do poder, a intervenção de um engenho mecânico é já um sinal de fraqueza. Êsse jovem louco que percorre as estradas multiplicando as "finas" e as "curvas fechadas" cede ao mais miserável dos reflexos de facilidade. E --- coisa aparentemente estranha, mas profundamente lógica --- êsse ousado nas estradas não é, na maior parte das vêzes, senão um tímido na vida. Eu soube, recentemente, da morte de um moço de vinte anos, em conseqüência de uma ultrapassagem fôrçada. Fìsicamente indolente a ponto de recuar diante de um passeio a pé de alguns quilômetros, preguiçoso nos estudos, indiferente a todos os problemas sociais e políticos, exceto ao pré-salário dos estudantes e, ao mesmo tempo, inibido diante das mulheres e receoso das responsabilidades do casamento, êle não tinha energia a não ser para calcar, sem dó, o acelerador.

É preciso lembrar também, pois se relacionam diretamente com nosso tema da violência, êsses acessos de furor animal, que vão das injúrias às "vias de fato", provocados por uma insignificante recusa de preferência ou pelo mais leve engarrafamento. Os psicólogos já analisaram as causas e os efeitos dessa barbárie motorizada: realmente, tudo se passa como se o espírito cavalheiresco diminuísse em função do número de cavalos-vapor de que dispõe o novo centauro tecnológico.

O mesmo reflexo de compensação e de fuga se revela nas produções literárias ou artísticas. O vitríolo parece aí água de rosa, o exagêro disfarça mal a vulgaridade. Aludindo a êsse nôvo conformismo da violência e do vício, Camus já fazia notar que a repetição de episódios obscenos em tantos romances contemporâneos tornava sua leitura tão fastidiosa quanto a dum manual de bom tom. Acode-nos à memória a observação de Talleyrand: "tudo o que é exagerado é insignificante". Mas os piores instintos de libertinagem e de crueldade, demasiado tímidos para se exprimirem em atos, encontram uma satisfação ilusória nessa expulsão de horrores e de torpezas --- cadáveres imaginários oferecidos a abutres empalhados. As proezas de sadismo, outrora reservadas a monstros que se eliminavam como animais ferozes ou a tiranos célebres como Nero, Tamerlão ou Hitler foram colocadas democràticamente ao alcance de tôdas as imaginações: no país das palavras e dos sonhos, tôda gente é rei.

O caráter artificial dessas elocubrações manifesta-se, quase sempre, no contraste entre as obras e os autores. Lembrar-me-ei por muito tempo duma conversa que mantive certa ocasião com um escritor português. "Eu li (dizia-me êle) um romance bem representativo da "nouvelle vague". Logo à primeira página, um estupro; pouco mais adiante, um incesto, depois um homicídio e nessa toada, o resto do livro. O herói do romance era pintado como um personagem tão inumano quão super-humano, uma espécie de arcanjo não só da revolta como do mal. Eu quis conhecer o autor --- e topei com um homem franzino, incolor e longiforme, calvo, portador de óculos, todo abotoadinho, muito organizado em sua conduta e em seu trabalho, demasiadamente ligado à sua velha "mamãezinha" e com tôdas as aparências de um impotente sexual. Êsse fabricante de super-homens era um granfininho..."

Quanto à corrida em direção ao informe e ao disforme, que estraga tôdas as artes (música, dança, poesia, pintura, escultura) nós aí encontramos a mesma manifestação de impotência. A beleza --- que é o objeto da arte --- exclui radicalmente a violência; os opostos se encontram, "ligados por uma harmonia". A música explosiva, as danças convulsivas, a poesia que desnatura a linguagem, a pintura e a escultura onde a caricatura ocupa o lugar da expressão --- todos êsses atentados sacrílegos contra as regras e os fins da arte surgem como violações estéreis. A violência desfigura o que ela é incapaz de transfigurar. "O despudor ocupa-lhes o lugar do gênio (como se disse a propósito de certos artistas): desprezando as aparências, êles crêem ir além das aparências; mutilando o visível, êles têm a ilusão de descobrir o invisível". Quando, na realidade (e tal é o segredo da grande arte) é a perfeição da aparência que nos eleva além da aparência, é a obra finita que nos revela o infinito...

Continua ...

domingo, 23 de janeiro de 2011

Juventude e violência (I)

[NA VIOLÊNCIA, A VELHICE DA JUVENTUDE
Um dos traços característicos de nossa época, é a rebeldia. Rebeldia contra a ordem, contra a razão, contra os valôres tradicionais. E vai um nada, da rebelião à violência, que se manifesta sob as mais variadas formas, nos mais diferentes setores, mais principalmente, em certas parcelas da juventude. Todo um processo se desencadeia a partir daí: a "enturmação" brutal a destruir a amizade; o sexo a esmagar o amor; a agressão a dominar nas concepções literárias e artísticas; o delírio da velocidade a atingir o paroxismo, etc. No artigo que segue, o autor disseca ESSA "VIOLÊNCIA VAZIA", EXPRESSÃO DE ENORME VÁCUO INTERIOR E DE IMPOTÊNCIA PROFUNDA, OPOSTA À "VIOLÊNCIA SADIA", FUNDADA NO BEM E DIRIGIDA CONTRA O MAL.]

"Os Jovens de agora são assim: pensam isto, querem aquilo" --- é o que se ouve dizer em tôda parte. Pois eu confesso que desconfio "a priori" dêsses mitos da juventude. Primeiro, por causa de sua excessiva simplificação: êles, na verdade, não se aplicam mais que a certa parcela da juventude, cuja importância é impossível avaliar. Segundo, porque são elaborados, a maior parte das vêzes, por adultos ou velhos que lançam sobre os "caçulas" a luz de suas esperanças ou a sombra de seus rancores.

A Juventude com um J maiúsculo não me impressiona mais que o Progresso com P grande. Mas que espécie de progresso e que jovens? Pois, graças aos céus e malgrado a influência crescente dos "mass-media" que tendem a substituir pelo protótipo mecânico o arquétipo ideal, a natureza que "se compraz na diversidade" não moldou todos os jovens na mesma fôrma. Um "fan" de Johnny Halliday e o autor da carta a André Maurois divulgada recentemente nas "Nouvelles Littéraires" nasceram na mesma época mas parecem não pertencer à mesma espécie. E entre êsses dois extremos todos os intermediários são possíveis.

A DOMINANTE DE NOSSA ÉPOCA: A REVOLTA

Existem, nas idéias e nos costumes, dominantes que são peculiares a cada época --- como, por exemplo, a libertinagem durante a Regência, o culto da Razão no tempo do iluminismo1, a apologia da sensibilidade e do irracional no século do romantismo, etc. Ora, uma das dominantes de nossa época é a revolta, em todos os domínios, contra os valôres tradicionais; revolta que se traduz pela exaltação e prática da violência.

Êsse fenômeno se observa em tôdas as ordens do humano e do social.

Na ordem da amizade, por exemplo. Em muitos meios, a amizade degenerou em camaradagem vulgar e brutal. A integração na turma (e tal palavra não significa necessàriamente uma associação de malfeitores) substitui a intimidade entre as pessoas e o intercâmbio de idéias e sentimentos. Ora, a turma busca muito freqüentemente distrações e aventuras mais ou menos sofisticadas de agressividade, e essa violência se multiplica em virtude do gregarismo. O aumento da delinqüência juvenil (blusões pretos ou amarelos) prende-se a essa corrupção do vínculo social. Um fenômeno tìpicamente moderno é o dos delitos coletivos cuja multiplicação causa apreensão aos criminologistas. Até no vício e no crime, observa-se essa absorção do indivíduo pela turma...

No plano da sexualidade, muitos jovens se presumem insensíveis, "libertos", e desprezam indistintamente não apenas a exaltação romântica ou o sentimentalismo sem graça das épocas precedentes, como também tudo o que se relaciona com a ternura ou com o ideal. O coração e a alma afiguram-se-lhes anacronismos e as relações sexuais reduzem-se, para êles, a "conjunções carnais" sem amor e sem mistério ou a manifestações elementares do desejo de potência. Seu ideal é o do macho, não o do amoroso. Observa-se evolução análoga entre certo número de môças cínicas e desavergonhadas, para as quais a rejeição incondicionada dos preconceitos substitui e suprime tôda reflexão.

O entusiasmo pelos esportes brutais e perigosos (praticados freqüentemente sem preparação e sem prudência) provém do mesmo estado de espírito. Penso aqui nos riscos gratuitos que assumem --- com inconcebível leviandade --- tantos jovens "mordidos" pelo alpinismo, pela espeleologia, pela natação, pela navegação a vela, e também nos perigos mortais a que êles expõem seus eventuais salvadores. E nesse delírio de velocidade (a porcentagem dos acidentes causados por jovens é de uma cruel eloqüência) que viola (entre pessoas aliás inofensivas) o mandamento eterno: "não matarás".

A moda artística e literária não escapa a essa falsa norma. Seu imperativo êssencial é surpreender, chocar, desnudar, ultrapassar todo limite e infringir tôda regra. Assistimos, em todos os domínios, ao desencadeamento da violência e da disformidade: danças selvagens, música epiléptica, cenas de histeria coletiva nas manifestações duma "vedette" da canção, sacrifício da palavra na poesia e da imagem e da cor na pintura, etc. Nem esqueçamos êsse fenômeno sociológico sem precedente que constitui o sucesso sempre crescente da literatura policial e dos filmes de terror, nos quais os instintos sádicos que habitam o coração do homem encontram cada dia que passa nôvo alimento.

[1] "Aufklaerung" --- iluminismo --- movimento cultural e intelectual que pretende dominar pela razão a problemática total do homem. Teve especial importância nos séculos XVII e XVIII.

Continua ...

Fonte: Revista Hora Presente (número 9 - Ano III, maio de 1971)


segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Pascal, exemple et signe...

Je ne peux pas relire les Pensées sans me répéter ces mots d'un Père de l'Église grecque: "On va à Dieu par des commencements sans fin"---ce qui exclut tout regret devant l'inachèvement de la grande oeuvre apologétique que Pascal, déjà blessé à mort par l'amour éternel, avait entreprise pour la gloire de Dieu et la conversion des hommes. Or, dans l'expression des choses suprêmes, l'ébauche vaut mieux que la construction parfaite et le cri va plus loin que le discours. Les fragments qui nous restent sont comme des flèches aiguës dont, si Pascal eût mené son oeuvre à bonne fin, l'élégance du Grand Siècle eût émoussé la pointe.

"Je suis l'universel étant le solitaire", dit un personnage du vieil Hugo. La formule s'applique à Pascal dans toute sa force et dans toute sa rigueur. Pascal n'est pas un ouvrier, c'est un témoin---un témoin devant les hommes du Dieu dont l'appel intérieur le brûle: son oeuvre est le reflet nu de son âme. Et c'est là qu'il faut chercher le secret de l'actualité permanente de sa pensée: ce cri solitaire d'un être qui sait qu'il "mourra seul", s'adresse à tous les hommes, ses frères en solitude, car il les atteint à ce point central où les individus communient par cela même qui les distingue: ce qui fait de chacun l'image unique d'un Dieu unique.

Misère de l'homme sans Dieu... La pensée de Pascal gravite autour d'un double refus: refus du mensonge et refus du désespoir. Comment renoncer à l'illusion---et au divertissement, cet écran qui voile l'homme à lui-même---sans verser dans le nihilisme? Comment allier la lucidité à l'espérance?

La lucidité nous apprend que deux puissances dominent le monde: la force brutale qui nous écrase et l'opinion qui nous trompe. La concupiscence, le mal ont pris un masque de lois et d'usages afin d'introduire, dans le chaos des égoïsmes, ce minimum d'ordre et de continuité qui est nécessaire à la vie en société. "On a tiré de la concupiscence d'admirables règles de police, de morale et de justice. Mais, dans le fond, ce vilain fond de l'homme n'est que couvert, il n'est pas ôté". Et il reparaît dès qu'un sursaut un peu plus violent de notre mauvaise nature vient rompre les fils fragiles qui neutralisent les égoïsmes en les cousant les uns aux autres: "quand la force attaque la grimace, quand un soldat fait voler par la fenêtre le bonnet carré d'un premier président"... Toute la dérision de la condition humaine---ce mélange aux proportions instables de violence et d'hypocrisie---éclate dans ce raccourci sauvage.

Faut-il donc désespérer? Non, car cette misère porte déjà la promesse de sa guérison dans la conscience qu'elle a d'elle-même. La connaissance de notre misère est la seule chose en nous qui ne soit pas misérable. Si nous voyons que tout est mal dans se monde, d'où vient ce regard sinon d'un autre monde dont nous sommes tombés? Ce monde supérieur---qui est celui de la vérité, de l'amour et du bonheur absolus---notre raison est assez forte pour savoir qu'elle en descend, mais elle est trop faible pour y remonter par ses seules forces. Et c'est ici qu'intervient le Christ, médiateur entre l'homme et Dieu, la misère et la plénitude. L'impuissance, le désespoir deviennent des ponts vers l'espérance suprême:"il est bon d'être lassé et fatigué par l'inutile recherche du vrai bien pour tendre les bras au libérateur".

La personne du Christ---en qui nous trouvons et Dieu et notre misère---se situe, comme un foyer d'irradiation, au centre de la pensée de Pascal. La seule lecture du Mystère de Jésus suffirait à révéler le secret de cette grande âme brisée encore par le remède que par le mal. "J'ai pensé à toi dans mon agonie, j'ai versé telle goutte de sang pour toi... Car je t'aime plus ardemment que tu n'as aimé tes souillures". Mais à côte de ce témoignage de la pitié divine à l'égard de l'homme, on voit poindre chez Pascal la révélation d'une autre pitié qui se manifeste en sens inverse: celle de l'homme à l'égard de Dieu---de ce Dieu fait homme et qui, étranger à la terre par sa divinité et séparé du ciel par son humanité, réalise ici-bas l'absolu de l'exil: "Jésus a prié les hommes et n'en a pas été exaucé... Jésus-Christ sera en agonie jusqu'à la fin du monde, il ne faut pas dormir pendant ce temps-là".

Ce cri de Pascal ouvre à la religion moderne une perspective que le Grand Siècle ignorait. Car aujour-d'hui ce n'est plus seulement le Christ, Dieu incarné, mais aussi son Père céleste qui entre en agonie dans l'âme des hommes. Dieu n'est plus pour nous ce monarque tout-puissant, dont la Providence régit l'univers, qu'invoquait la piété de nos aïeux: les progrès fabuleux des sciences et des techniques le relèguent de plus en plus dans une transcendance voisine du néant. Dans tout ce qui concerne le maniement des causes secondes, l'homme prend peu à peu la place de Dieu et devient la providence de l'homme. La conquête du ciel matériel---le royaume métaphorique de Dieu---semble consacrer cette victorie de l'homme sur les vieux mythes divins issus de l'ignorance et de la peur. On songe aux vers prophétiques de Mistral évoquant "l'humanité future---qui maîtrise à son gré le monde naturel---et devant l'homme souverain---Dieu pas à pas se retirant".

Mais quel Dieu? Celui qui a parlé à Pascal dans la nuit du 23 au 24 novembre 1654---"Joie, joie, pleurs de joie... renonciation totale et douce". Ce Dieu-là, ce Dieu pur et désarmé qui habite au centre de l'âme humaine, aucune exploration des espaces, aucune conquête de l'univers extérieur ne peut l'arracher de son lieu. Et c'est à l'homme qu'il appartient de veiller sur lui comme un père sur son enfant. Dieu a créé l'homme dans l'éternité: à l'homme incombe la tâche de sauver Dieu dans le temps.

"Dieu se donne aux hommes en tant que puissant ou en tant que parfait---à leur choix", disait Simone Weil. Nous avons empiété sur la puissance de Dieu, mais devant sa perfection, nous sommes aussi pauvres, aussi démunis qu'aux premiers jours de l'histoire. Car cela est d'un autre ordre, nous a prévenus Pascal. À cet ordre surnaturel, qui est celui de la charité, nous ne pouvons accéder que par l'humilité et par la prière---cette prière de l'homme qui est la réponse à la prière d'un Dieu qui, n'étant qu'amour, appelle et ne contraint pas. La rencontre de Pascal et du Christ apparaîtra jusqu'à la fin des temps comme un signe et comme un exemple pour rappeler aux hommes que "prier, c'est exaucer Dieu".

Fonte: "Ils sculptent en nous le silence" - Ed. François-Xavier de Guibert

domingo, 9 de janeiro de 2011

El arte de envejecer

La escena que voy a contar se sitúa en 1943. Era la época en que las restricciones alcanzaban su plenitud, o mejor, su vacío.

Se había organizado en mi pueblo una verbena en la que se vendían, a beneficio de los prisioneros, dulces que no se encontraban desde hacía bastante tiempo y, en especial, maravillosos buñuelos de crema fabricados por los campesinos del lugar. Hacia el final del día llegó un viejo que se había arrastrado penosamente desde el pueblo vecino para gozar de esta insólita ganga. No hubo suerte: se acababan de vender los últimos buñuelos de crema. Y el pobre viejo, terriblemente decepcionado, se puso a llorar como un niño.

También yo tuve ganas de llorar, pues esta escena me hizo apreciar a lo vivo toda la miseria del hombre que no ha sabido envejecer. Y pensé en las amargas palabras de Sainte-Beuve: "No se madura; se endurece uno en ciertos lugares, se pudre en otros". De hecho, estos dos fenómenos están tan unidos que de ciertos viejos se dice indistintamente que están "endurecidos" o "reblandecidos". Endurecidos en el sentido de que se han hecho indiferentes a su entorno, a la humanidad, a los grandes problemas de la existencia, y reblandecidos en el sentido de que son ridículamente sensibles a los menores incidentes que afectan sus costumbres, sus manías y sus caprichos. El viejo que lloraba por la falta de un buñuelo de crema no pensaba en los sufrimientos de los soldados y de los prisioneros, en los niños que morían de hambre y en todos los horrores de la catástrofe que trastornaba el universo.

Este caso límite presenta a cualquier hombre entrado en años un admirable ajemplo negativo, la imagen de lo que debe evitar, quiero decir.

El arte de saber envejecer se resume en una palabra: desprendimiento. Cuanto más viejo se es, menos derecho se tiene a ser egoísta. Pues el egoísmo de los jóvenes está siempre más o menos compensado por la generosidad y la inocencia del impluso vital, mientras que el egoísmo del viejo no es más que un resto inerte y estéril depositado por el reflujo. Balzac habla en alguna parte de esos viejos rostros en los que, de las antiguas pasiones, no subsisten más que "sus cuerdas y sus mecanismos". El desgaste sin la transparencia, el agotamiento sin la serenidad.

Se ha escrito que todos los donos de Dios son exigencias. La vejez no escapa a esta ley: es una gracia a la que hay que corresponder. Cuanto más largo es el camino de nuestra existencia, más debe alejarnos de nosotros mismos. Al cerrarse el porvenir se abre la eternidad; la rueda de los días, al mismo tiempo que desgasta el cuerpo, debe agudizar el alma.

Sólo así el viejo puede superar la gran tentación de su edad: arañar las cenizas de un fuego apagado, ruminar sin cesar el pasado, como los jóvenes se anticipan al porvenir. "Quisiera tener cinco años más, estar casada, tener hijos", me decía ayer una joven llena de vida y de impaciencia. Una hora más tarde me encontré con un viejo que suspiraba: "¡Ay!, !si tuviera veinte años menos!"

Se nos está machacando sin cesar que hay que "ser de su tiempo". Para un anciano, ser de su tiempo es vivir ya más allá del tiempo: es desprenderse de todo lo que muere para abrirse a la luz y al amor que no mueren. De esa manera, cualesquiera que sean las pruebas de la vejez, el hombre de edade sigue estando presente y acogiendo a todos los seres y a todas las edades, y cuando llega su última hora, muere vivo.

Fonte: "El equilíbrio y la armonía" - Belacqva, 2005