segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Juventude e violência (II)

O "INSENSÍVEL": UM FROUXO QUE BANCA O FORTE

Esse gosto pela violência não deve ser interpretado como manifestação anárquica duma vitalidade incontida. Foi assim, talvez, em certas épocas, como na Antiguidade ou na Renascença, quando a violência se aliava freqüentemente ao poder criador. Salvo raras exceções, trata-se mais, hoje, de compensar uma fraqueza que imita os sentimentos e os gestos da fôrça. O "insensível" é um frouxo que banca o forte: suas manifestações de violência são como a planta espinhosa que brota num solo ingrato, ou como a erupção de um vulcão em vias de se extingüir.

Note-se que essa epidemia de violência causa estragos precisamente numa época em que os homens sedentos de segurança automática, se encontram cada vez mais desarmados para enfrentar os percalços e os deveres duma existência normal. Quanto mais êles se expõem ao risco artificial e estéril, tanto mais êles necessitam de segurança contra o risco natural e fecundo.

Se retomarmos, um a um, os exemplos citados acima, encontraremos em todos os mesmos sintomas (e os mesmos disfarces) duma fraqueza ávida de sensações fortes.

O fenômeno da turma explica-se pela inaptidão de estabelecer verdadeiras amizades e de criar verdadeiros grupos. O desmoronamento das estruturas liberta o elemento bruto. Sêres incapazes de se unirem tendo em vista um fim comum positivo, isto é, visando a alguma coisa, juntam-se contra isto ou aquilo, e sua revolta, convertida em lei e fim supremo, não rende nada.

A sexualidade? Êsses adoradores desenfreados da carne são, quase sempre, incapazes não apenas de amar profunda e duradoiramente, mas até de sentir uma paixão autêntica. "O amor está tanto mais doente quanto nossa civilização se tornou mais afrodisíaca", dizia Bergson. A sexualidade --- reduzida a seus componentes elementares (e por isso mesmo já desnaturada, pois o homem pode imitar tudo do animal, menos a inocência dos instintos) --- não une mais, não vincula mais; é uma troca à flor da pele, um "bem de consumo" que não exige nenhum investimento. Ora, a vida sem preocupações foi sempre negócio dos pobres, não dos ricos.

O que prova o caráter artificial dessa exaltação do sexo é que ela coincide com o desaparecimento progressivo das diferenças sexuais. Cruzei outro dia com um casal que ia no meu caminho: a môça, de calças compridas, traços rudes e cabelos curtos; o rapaz, com imensa cabeleira ondulada. Tratei de senhor a môça e de senhorita o rapaz e quando me tiraram do engano, devo ter feito grande esfôrço para dar crédito às suas palavras. Pensei que no têrmo da decadência, a confusão dos sexos estivêsse reproduzindo, a seu modo, o andrógino primitivo de Platão...

Irei mais longe: êsse frenesi do sexo, para muitos de nossos contemporâneos, não chega até os atos. É mais uma obsessão do espírito que uma necessidade do corpo: exerce-se (se assim posso expressar-me) por procuração: inúmeros indivíduos buscam no relato ou no espetáculo dos amôres dos outros (quer se trate de personagens reais ou fictícios) uma concepção imaginária para a esterilidade de sua própria existência. Assim se explica o sucesso desmesurado do erotismo na literatura (aí se compreendendo as numerosas produções pseudo-científicas consagradas aos problemas sexuais) e em todos os outros meios de informação: cinema, televisão, publicidade, etc. Essa excitação cerebral não conhece limites porque não tem realidade. Tudo é possível, com efeito, no plano do sonho e da ficção. Tal como as proliferações cancerosas em tôrno do órgão que elas próprias devoram, o erotismo representa a degenerescência hipertrófica da sexualidade normal. Parodiando a frase célebre de Pascal, um jovem filósofo americano escreveu que, no mundo moderno, "a sexualidade tem sua circunferência em tôda parte e o seu centro em nenhuma".

A mesma confusão de desespêro e impotência se encontra no gosto pelos esportes violentos e, intensamente, no delírio automobilístico que faz, todo ano, milhares de vítimas entre as quais inocentes que pagam pelos pecadores. O simples fato de se tornar necessária, para demonstrar a exaltação do poder, a intervenção de um engenho mecânico é já um sinal de fraqueza. Êsse jovem louco que percorre as estradas multiplicando as "finas" e as "curvas fechadas" cede ao mais miserável dos reflexos de facilidade. E --- coisa aparentemente estranha, mas profundamente lógica --- êsse ousado nas estradas não é, na maior parte das vêzes, senão um tímido na vida. Eu soube, recentemente, da morte de um moço de vinte anos, em conseqüência de uma ultrapassagem fôrçada. Fìsicamente indolente a ponto de recuar diante de um passeio a pé de alguns quilômetros, preguiçoso nos estudos, indiferente a todos os problemas sociais e políticos, exceto ao pré-salário dos estudantes e, ao mesmo tempo, inibido diante das mulheres e receoso das responsabilidades do casamento, êle não tinha energia a não ser para calcar, sem dó, o acelerador.

É preciso lembrar também, pois se relacionam diretamente com nosso tema da violência, êsses acessos de furor animal, que vão das injúrias às "vias de fato", provocados por uma insignificante recusa de preferência ou pelo mais leve engarrafamento. Os psicólogos já analisaram as causas e os efeitos dessa barbárie motorizada: realmente, tudo se passa como se o espírito cavalheiresco diminuísse em função do número de cavalos-vapor de que dispõe o novo centauro tecnológico.

O mesmo reflexo de compensação e de fuga se revela nas produções literárias ou artísticas. O vitríolo parece aí água de rosa, o exagêro disfarça mal a vulgaridade. Aludindo a êsse nôvo conformismo da violência e do vício, Camus já fazia notar que a repetição de episódios obscenos em tantos romances contemporâneos tornava sua leitura tão fastidiosa quanto a dum manual de bom tom. Acode-nos à memória a observação de Talleyrand: "tudo o que é exagerado é insignificante". Mas os piores instintos de libertinagem e de crueldade, demasiado tímidos para se exprimirem em atos, encontram uma satisfação ilusória nessa expulsão de horrores e de torpezas --- cadáveres imaginários oferecidos a abutres empalhados. As proezas de sadismo, outrora reservadas a monstros que se eliminavam como animais ferozes ou a tiranos célebres como Nero, Tamerlão ou Hitler foram colocadas democràticamente ao alcance de tôdas as imaginações: no país das palavras e dos sonhos, tôda gente é rei.

O caráter artificial dessas elocubrações manifesta-se, quase sempre, no contraste entre as obras e os autores. Lembrar-me-ei por muito tempo duma conversa que mantive certa ocasião com um escritor português. "Eu li (dizia-me êle) um romance bem representativo da "nouvelle vague". Logo à primeira página, um estupro; pouco mais adiante, um incesto, depois um homicídio e nessa toada, o resto do livro. O herói do romance era pintado como um personagem tão inumano quão super-humano, uma espécie de arcanjo não só da revolta como do mal. Eu quis conhecer o autor --- e topei com um homem franzino, incolor e longiforme, calvo, portador de óculos, todo abotoadinho, muito organizado em sua conduta e em seu trabalho, demasiadamente ligado à sua velha "mamãezinha" e com tôdas as aparências de um impotente sexual. Êsse fabricante de super-homens era um granfininho..."

Quanto à corrida em direção ao informe e ao disforme, que estraga tôdas as artes (música, dança, poesia, pintura, escultura) nós aí encontramos a mesma manifestação de impotência. A beleza --- que é o objeto da arte --- exclui radicalmente a violência; os opostos se encontram, "ligados por uma harmonia". A música explosiva, as danças convulsivas, a poesia que desnatura a linguagem, a pintura e a escultura onde a caricatura ocupa o lugar da expressão --- todos êsses atentados sacrílegos contra as regras e os fins da arte surgem como violações estéreis. A violência desfigura o que ela é incapaz de transfigurar. "O despudor ocupa-lhes o lugar do gênio (como se disse a propósito de certos artistas): desprezando as aparências, êles crêem ir além das aparências; mutilando o visível, êles têm a ilusão de descobrir o invisível". Quando, na realidade (e tal é o segredo da grande arte) é a perfeição da aparência que nos eleva além da aparência, é a obra finita que nos revela o infinito...

Continua ...