terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Juventude e violência (III)

RAIZ METAFÍSICA DA FUGA NA VIOLÊNCIA

Se procurarmos a raiz metafísica dessa fuga na violência, nós a encontraremos no declínio da vida interior e dos valôres especulativos, donde provém em linha reta, os dois grandes pecados do mundo moderno: a idolatria da ação exterior e o culto da novidade.

A idolatria da ação. É um elogio incondicional dizer de alguém que é um homem de ação ou que é "dinâmico". Só que nos esquecemos de precisar qual o gênero de ação ou a qualidade de fôrça de que se trata.

O culto da novidade. O valor se define não em relação a modelos transcendentes (bem ou mal, verdadeiro ou falso, belo ou feio), mas em têrmos de "para a frente" e "para trás". Sêneca, falando dos representantes da "nouvelle vague" romana, já escrevia: "mutantur non in melius, sed in aliud"; êles procuram não o que há de melhor, mas o que há de nôvo.

Não há nada mais fácil de se admitir do que êsses dois desvios conterem o germe e a justificação do espírito de violência.

Comecemos pelo ativismo. Tôda ação, visando à modificação do mundo exterior e à afirmação de nosso poder sobre os sêres e as coisas, não será sadia e fecunda se não fôr iluminada e guiada por uma luz interior que se situa acima do tempo. O homem que não age seguindo um modêlo ideal cai na mania da ação pela ação: o movimento não tem mais outro fim que êle mesmo. Afinal, a ação se torna como uma droga: um excitante para o "eu" (no sentido pascaliano do têrmo) e um narcótico para a alma. Não há mais fim e, por conseguinte, não há mais critério.

Podemos dizer outro tanto da inovação e da moda. A novidade não é nem um bem nem um mal em si mesma; ela é bem ou mal conforme nos aproxime ou nos afaste de nossa própria natureza e de nosso destino. Mas, se êsse critério se esvanece, onde encontraremos nós a justificação para uma mudança senão na própria mudança?

E eis aí a porta aberta à violência sob tôdas as suas formas. Aquêle que é incapaz de se afirmar por uma ação positiva e criadora tem sempre o recurso de se refugiar numa ação negativa e destruidora. A violência é o melhor alibi do impotente e do mal sucedido. É, com efeito, mais fácil estuprar uma jovem do que construir um lar, pisar um acelerador do que dirigir a existência pelas rudes avenidas do trabalho e do devotamento, massacrar formas e côres do que pintar uma tela de Wermer ou de Velásquez. Mutilar, devastar, destruir dão, sem grande custo, a embriaguez da fôrça e podem mesmo conduzir à glória --- essa falsa glória publicitária que se prende hoje ao escândalo e ao crime mais do que à beleza e à virtude. Renovando a façanha de Eróstrato, o jovem americano que acaba de massacrar covardemente seis môças responde aos inquisidores: "eu quis ser alguém". Cito um caso limite, mas perfeitamente lógico. Num século em que o dinamismo e a eficácia se tornaram os valôres supremos, os fautores da violência fôrçam até às últimas conseqüências a lei dum mundo sem lei --- tanto mais que neste mesmo século em que a renúncia e a esperança são cada vez menos ensinadas e praticadas, em que cada um quer auferir quanto antes os resultados de sua ação, os efeitos da violência são mais satisfatórios, por seu caráter imediato e espetacular, do que os dum trabalho positivo e de largo fôlego. O efeito dum sôco inscreve-se instantaneamente no rosto de quem o recebe, mas longos meses têm de decorrer entre a semeadura e a colheita. Demais, a colheita está sempre ameaçada, é incerta, ao passo que a violência atinge infalivelmente o seu objetivo.

Provindo duma erosão da substância humana, o recurso à violência se faz acompanhar necessariamente duma queda vertical da liberdade. Fala-se, sem cessar, de evasão, de libertação. Mas, evadir-se de onde? Libertar-se de que? A fôrça das coisas é una como Deus é um: não há nada que possa ser estranho ao universo e às suas leis. Langlade-Demoyen faz notar muito justamente que, em nosso mundo, encontramos cada vez mais revoltas e cada vez menos liberdade. Nada mais normal: é contra a liberdade que se revolta! Pois a verdadeira liberdade é antes de tudo obediência a uma ordem ao mesmo tempo interior e superior ao homem: parece Deo libertas est, dizia Sêneca. Basta ver de que miseráveis conformismos são prêsas êsses jovens que não cessam de berrar e de imitar os outros; basta ver por que servilismo êles trocaram a disciplina; basta ver a que modas infelizes e nati-mortas êles imolam os costumes seculares. É ser livre repelir a tradição e agitar-se a qualquer impulso da propaganda, gritar atrás de Johnny ou deixar crescer o cabelo como Antoine, ler "Playboy" e repudiar os clássicos? Não quero intrometer-me em domínios muito diversos mas ao mesmo tempo afins no que concerne à influência da moda: senão eu poderia falar dêsses católicos de vanguarda que devoram, sem uma sombra de senso crítico, vagos trechos de Teilhard de Chardin e torcem o nariz diante de Santo Tomás, ou para os quais a obsessão da pílula substitui a meditação sobre os mistérios da fé.

Não resisto ao prazer de citar as seguintes linhas em que Bossuet descreve admiravelmente essa instabilidade na escravidão que dá a ilusão da liberdade. Bossuet fala do "mundano": "Êsse movimento perpétuo que lhe acarreta mil dificuldades não deixa de satisfazê-lo pela impressão que lhe dá de uma liberdade errante. Como a árvore que o vento parece acariciar brincando com suas fôlhas, embora êsse vento não a acaricie sem agitá-la e jogá-la ora de um lado ora do outro, com grande inconstância, vós diríeis que se alegra com a liberdade de seu movimento, igualmente, embora os homens do mundo não tenham liberdade verdadeira, sendo quase sempre constrangidos a ceder aos diversos usos que os impelem como o vento, êles julgam, contudo, gozar duma certa liberdade e paz, fazendo vagar de um e de outro lado seus desejos confusos e incertos."

Continua ...