terça-feira, 26 de maio de 2015

Convidada: Simone Weil -- Reflexões sobre o bom uso dos estudos escolares como meio de cultivar o amor a Deus.

A chave de uma concepção cristã dos estudos é que a oração é feita de atenção. A oração é a orientação para Deus de toda a atenção de que a alma é capaz. A qualidade da oração está para muitos na qualidade da atenção. O calor do coração não pode supri-la.

Só a parte mais elevada da atenção entra em contato com Deus, quando a oração é suficientemente intensa e pura para que um tal contato se estabeleça; mas toda a atenção deve estar voltada para Deus.

Os exercícios escolares desenvolvem, bem entendido, uma parte menos elevada da atenção. Eles são, não obstante, plenamente eficazes para aumentar a capacidade de atenção que estará disponível no momento da oração, desde que os executemos para esse fim e somente com esse fim.

Se bem que hoje tal pareça ignorar-se, a formação da faculdade de atenção é o verdadeiro fim e quase o único interesse dos estudos. A maioria dos exercícios escolares tem também um certo interesse intrínseco; mas esse interesse é secundário. Todos os exercícios que fazem um verdadeiro apelo à capacidade de atenção tem um interesse similar e igualmente legítimo.

Os estudantes que amam a Deus nunca deveriam dizer: "Eu amo a matemática", "Eu amo o francês", "Eu amo o grego". Eles devem aprender a amar tudo isso, porque tudo isso faz aumentar essa atenção que, orientada para Deus, é a substância mesma da oração.

Não ter dom nem gosto natural pela geometria não impede que a investigação de um problema ou o estudo de uma demonstração desenvolvam a atenção. É quase o contrário. É quase uma circunstância favorável.

Na verdade, pouco importa que se chegue a encontrar a solução ou a entender a demonstração, embora devamos fazer verdadeiramente um esforço de atenção por isso. Nunca, em nenhum caso um verdadeiro esforço de atenção se perde. Ele é sempre plenamente eficaz no plano espiritual, e por conseguinte também, por acréscimo, no plano inferior da inteligência, porque toda luz espiritual ilumina a inteligência.

Se buscamos com verdadeira atenção a solução de um problema de geometria e, ao fim de uma hora, não estamos mais avançados do que no começo, avançamos todavia, durante cada minuto dessa hora, numa outra dimensão mais misteriosa. Sem que o sintamos, sem que o saibamos, este esforço aparentemente estéril e infrutífero introduziu mais luz na alma.

O fruto encontrar-se-á um dia, mais tarde, na oração. Encontrar-se-á sem dúvida também, por acréscimo, num domínio qualquer da inteligencia, talvez completamente alheio à matemática. Talvez um dia, aquele que despendeu este esforço ineficaz será capaz de apreender mais diretamente por causa deste mesmo esforço, a beleza de um verso de Racine. Mas que o fruto deste esforço se deve recuperar na oração, isso é certo, não oferece a menor dúvida.

As certezas desta espécie são experimentais. Mas se nelas não acreditamos antes de as ter experimentado, se pelo menos não nos conduzimos como se nelas acreditássemos, não faremos nunca a experiência que dá acesso a tais certezas. Há aí uma espécie de contradição. É assim, a partir de um certo nível, com todos os conhecimentos úteis ao progresso espiritual. Se não os adotamos como regra de conduta antes de os ter verificado, se não lhes permanecemos ligados por tempo prolongado apenas pela fé, uma fé a princípio sombria, sem luz, não os transformaremos jamais em certezas. A fé é condição indispensável.

O melhor suporte da fé é a garantia de que se pedimos pão ao nosso Pai, ele não nos dará pedras. Mesmo fora de toda a crença religiosa explícita, sempre que um ser humano realiza um esforço de atenção com o único desejo de se tornar mais apto a apreender a verdade, ele adquire esta aptidão maior, ainda que o seu esforço não tenha produzido qualquer fruto visível. Um conto esquimó explica assim a origem da luz: "O corvo que na noite eterna não podia encontrar alimento desejou a luz, e a terra iluminou-se". Se há verdadeiro desejo, se o objeto do desejo é realmente a luz, o desejo de luz produz a luz. Há verdadeiramente desejo quando há esforço de atenção. É realmente a luz que se deseja se está ausente qualquer outro móbil. Mesmo quando os esforços de atenção permanecem aparentemente estéreis durante anos, um dia uma luz exatamente proporcional a esses esforços inundará a alma. Cada esforço acrescenta um pouco de ouro a um tesouro que nada no mundo pode subtrair. Os esforços inúteis empreendidos pelo Cura d'Ars, durante longos e dolorosos anos, para aprender latim, deram todos os seus frutos no discernimento maravilhoso pelo qual ele distinguia a própria alma dos penitentes por detrás das suas palavras e mesmo por detrás do seu silêncio.

É necessário, portanto, estudar sem qualquer desejo de obter boas notas, de ter sucesso nos exames, de obter qualquer resultado escolar, sem nenhuma consideração por gostos ou aptidões naturais, com idêntica aplicação a todos os exercícios, com o pensamento de que eles todos servem para formar essa atenção que é a substância da oração.

No momento em que nos aplicamos a um exercício, é necessário querer realizá-lo corretamente; porque esta vontade é indispensável para que haja verdadeiro esforço. Mas através deste fim imediato, a intenção profunda deve dirigir-se unicamente para o acréscimo do poder de atenção em vista da oração, da mesma forma que quando se escreve se desenha a forma das letras sobre o papel, sem que o objeto sejam as letras em si, mas a idéia que se quer exprimir.

Pôr nos estudos esta única intenção, com exclusão de qualquer outra, é a primeira condição do seu bom uso espiritual. A segunda condição é a de nos obrigarmos rigorosamente a olhar de frente, a contemplar com atenção, durante muito tempo, cada exercício escolar falhado, em toda a torpeza da sua mediocridade, sem procurar nenhuma desculpa, sem negligenciar nenhuma falha nem correção do professor, procurando recuar à origem de cada falha. É grande a tentação de fazer o contrário, de passar por um exercício corrigido, se ele está errado, um olhar oblíquo, e esquecê-lo em seguida. Quase todos os estudantes agem assim na maior parte das vezes. É necessário afastar esta tentação.

Nada é mais necessário ao bom sucesso escolar, porque se trabalha sem muito progredir, faça-se o esforço que se fizer, quando não se presta atenção aos erros cometidos e às correções dos professores.

Assim pode-se adquirir, sobretudo, a virtude da humildade, tesouro infinitamente mais precioso do que todo progresso escolar. A este respeito, a contemplação da própria estupidez é talvez mais útil inclusise que a do pecado. A consciência do pecado proporciona o sentimento, a idéia de que se é mau, o que pode ocasionar o desenvolvimento de um certo orgulho. Quando nos obrigamos a fixar o olhar dos olhos e da alma sobre um exercício escolar estudipamente resolvido, sentimos com uma evidência irresistível a própria mediocridade. Não há conhecimento mais desejável. Se chegamos a conhecer esta verdade com toda a alma, estamos firmemente estabelecidos no verdadeiro caminho.

Se estas duas condições se encontram perfeitamente bem preenchidas, os estudos escolares são, sem dúvida, um caminho para a santidade tão bom como qualquer outro.

Para preencher a segunda basta querê-lo. Não é o mesmo com a primeira. Para prestar realmente atenção, é necessário saber como consegui-lo.

Muitas vezes, confunde-se a atenção com uma espécie de esforço muscular. Se dissermos aos alunos: "Agora ides prestar atenção", vemo-los franzir as sobrancelhas, prender a respiração, contrair os músculos. Se dois minutos mais tarde lhes perguntamos a que prestaram atenção, eles não conseguem responder. Não prestaram atenção a nada. Não prestaram atenção, apenas contraíram os músculos.

Aplicamos muitas vezes este tipo de esforço muscular aos estudos. Como isso acaba por cansar, tem-se a impressão de que se trabalhou. É uma ilusão. A fadiga não tem qualquer relação com o trabalho. O trabalho é esforço útil, seja fatigante ou não. Esta espécie de esforço muscular nos estudos é completamente estéril, mesmo se realizada com boa intenção. É desse tipo de boa intenção que se diz que o inferno está cheio. Os estudos realizados dessa forma podem, por vezes, ser escolarmente bons, do ponto de vista das notas e dos exames, mas apesar do esforço realizado e do uso das capacidades naturais esse tipo de estudo é sempre inútil.

A vontade, que em caso de necessidade faz cerrar os dentes e suportar o sofrimento, é a arma principal do aprendiz no trabalho manual. Mas, contrariamente ao que habitualmente se crê, ela não tem quase nenhum lugar no estudo. A inteligência só pode ser movida pelo desejo. Para que haja desejo é necessário que haja prazer e alegria. A inteligência cresce e frutifica na alegria. A alegria de aprender é tão indispensável aos estudantes como a respiração aos corredores. Onde ela está ausente, não há estudantes, mas pobres caricaturas de aprendizes que no final da sua aprendizagem nem ofício terão.

É o papel que o desejo desempenha no estudo que permite fazer dele uma preparação para a vida espiritual. Pois o desejo, orientado para Deus, é a única força capaz de elevar a alma. Ou melhor, é Deus que vem apoderar-se da alma e a eleva, mas é o desejo que "obriga" Deus a descer; Deus só vem para aqueles que pedem e nunca deixa de vir para aqueles que pedem com frequência, ardentemente e de forma prolongada.

A atenção é um esforço, o maior dos esforços talvez, mas é um esforço negativo. Por si não comporta fadiga. Quando a fadiga se faz sentir, a atenção quase não é mais possível, a menos que se esteja bem exercitado; o melhor então é parar, descansar um pouco e recomeçar; parar e recomeçar da mesma maneira como se inspira e expira.

Vinte minutos de atenção intensa e sem fadiga valem infinitamente mais do que três horas desse dedicação de sobrancelhas franzidas que faz dizer com o sentimento do dever cumprido: "trabalhei bem".

Mas, apesar das aparências, é também muito mais difícil. Há algo na nossa alma que repugna a verdadeira atenção muito mais violentamente do que a carne repugna a fadiga. Esse algo está muito mais próximo do mal que a carne. É por isso que todas as vezes que prestamos verdadeira atenção destruimos um pouco desse mal em nós. Se prestamos atenção com essa intenção, um quarto de hora de atenção vale muitas boas obras.

A atenção consiste em suspender o pensamento, em deixá-lo disponível, vazio e permeável ao objeto, mantendo em nós mesmos, próximos do pensamento, mas a um nível inferior e sem contato com ele, os diversos conhecimentos adquiridos que somos forçados a utilizar. O pensamento deve ser, para com todos os pensamentos particulares e já formados, como um homem que sobre uma montanha, ao olhar em frente, percebe debaixo de si, mas sem as mirar, muitas florestas e planícies. E sobretudo, o pensamento deve estar vazio, à espera, sem nada procurar, mas pronto a receber, na sua verdade nua, o objeto que o vai penetrar.

Todos os contra-sensos nas traduções, todos os absurdos na solução dos problemas de geometria, todas as torpezas de estilo e todos os defeitos de encadeamento de idéias nos trabalhos de francês, tudo isso decorre de o pensamento se ter precipitado precocemente sobre algo, e, ao preencher-se assim prematuramente, ter deixado de estar disponível para a verdade. A causa é sempre a pretensão de ser ativo, de querer buscar. Podemos comprovar que é assim em cada ocasião, para cada falha, se recuarmos até à raiz. Não há melhor exercício do que esta comprovação. Porque esta verdade é daquelas nas quais não podemos crer senão experimentando-as muitas vezes. É assim com todas as verdades essenciais.

Os bens mais preciosos não devem ser procurados, mas esperados. Porque o homem não pode encontrá-los por intermédio das suas próprias forças, e se se põe à sua procura encontrará, em seu lugar, falsos bens nos quais não saberá discernir a falsidade.

A solução de um problema de geometria não é em si um bem precioso, mas a mesma lei também se lhe aplica, porque ela é a imagem de um bem precioso. Sendo um pequeno fragmento de verdade particular, é uma imagem pura da Verdade única, eterna e viva, essa Verdade que disse um dia com uma voz humana: "Eu sou a Verdade".

Pensado assim, todo exercício escolar se assemelha a um sacramento.

Há, para cada exercício escolar, uma maneira específica de alcançar a verdade mediante o desejo de alcançá-la e sem necessidade de buscá-la. Há uma maneira de prestar atenção aos dados de um problema de geometria sem buscar sua solução, às palavras de um texto em latim ou em grego sem buscar seu sentido, de esperar, quando escrevemos, que a palavra justa venha por si própria colocar-se sob a caneta repelindo simplesmente as palavras inadequadas.

O primeiro dever para com os alunos e estudantes é o de lhes ensinar este método, não apenas em geral, mas na forma particular que se refere a cada exercício. É o dever, não só dos seus professores, mas também dos diretores espirituais. E estes, além do mais, devem deixar claro com uma diafaneidade absoluta, a analogia entre a atividade da inteligência em cada um desses exercícios e a situação da alma que, com a lâmpada bem provida de azeite, espera o seu esposo com confiança e desejo.
Todo adolescente que ame a Deus, ao fazer um exercício de latim, deveria tratar de parecer-se um pouco mais, por meio deste exercício, ao escravo que vela e escuta junto à porta esperando a chegada do seu senhor.

A sua chegada, o senhor instala o escravo à mesa e serve-lhe de comer ele mesmo.

É somente esta espera, esta atenção, o que obriga o senhor a um tal excesso de ternura. Quando o escravo se consumiu de cansaço no campo, o senhor ao regressar diz-lhe: "Prepara minha comida e serve-me". E trata-o como escravo inútil que faz apenas o que se lhe ordena. É certo que no domínio da ação é necessário fazer tudo o que é ordenado, à custa de não importa que grau de esforço, de cansaço e de sofrimento, porque aquele que desobedece não ama. Mas, depois disto, não se é mais do que um escravo inútil. É a condição do amor, mas não é suficiente. O que força o senhor a fazer-se escravo do seu escravo, a amá-lo, não é nada disso; não é, menos ainda, uma busca que o escravo tivesse a temeridade de empreender por sua própria iniciativa; é unicamente a vigília, a espera e a atenção.

Felizes pois os que passam a sua adolescência e a sua juventude formando unicamente este poder de atenção. Sem dúvida que não estão mais próximos do bem que os seus irmãos que trabalham nos campos e nas fábricas. Estão próximos de outra forma. Os camponeses, os operários possuem essa proximidade de Deus, de sabor incomparável, que jaz no fundo da pobreza, da ausência de consideração social e dos sofrimentos prolongados e lentos. Mas, se considerarmos as ocupações nelas mesmas, os estudos estão mais próximos de Deus por causa desta atenção que é a sua alma. Aquele que atravessou os anos de estudo sem desenvolver em si esta atenção perdeu um grande tesouro.

Não é apenas o amor a Deus que tem por substância a atenção. O amor ao próximo, que sabemos ser o mesmo amor, é feito da mesma substância. Os infelizes não precisam de outra coisa neste mundo que de homens capazes de lhes prestarem atenção. A capacidade de prestar atenção a um infeliz pe coisa muita rara, muito difícil; é quase um milagre; é um milagre. Quase todos os que crêem ter esta capacidade não a têm. O calor, o ímpeto do coração, a piedade não são suficientes.

Na primeira lenda do Graal, diz-se que o Graal, pedra miraculosa que por virtude da hóstia consagrada sacia toda fome, pertencerá ao primeiro que disser ao guardião, rei paralítico por causa de uma dolorosa ferida: "Qual é o teu tormento?"

A plenitude do amor ao próximo é simplesmente ser capaz de lhe perguntar: "Qual é o teu tormento?". É saber que o infeliz existe, não como unidade numa coleção, não como um exemplar da categoria social etiquetada "infelizes", mas enquanto homem exatamente semelhante a nós, que foi um dia atingido e marcado com uma marca inimitável pela infelicidade. Para isso é suficiente, mas indispensável, saber dirigir sobre ele um certo olhar.

Este olhar é em primeiro lugar um olhar atento, em que a alma se esvazia de todo o conteúdo próprio para receber nela mesma o ser que se está olhando tal como ele é, em toda a sua verdade. Disto só é capaz aquele que é capaz de atenção.

Assim, é verdade, ainda que de modo paradoxal, que um exercício de latim, um problema de geometria, mesmo que falhados, sempre que lhe tenhamos dedicado a espécie de esforço adequado, podem tornar-nos, um dia, mais capazes, se a ocasião se apresentar, de levar a um infeliz, no momento culminante de sua angústia, o socorro suscetível de o salvar.

Para um adolescente capaz de apreender esta verdade, e suficientemente generoso para desejar este fruto de preferência a qualquer outro, os estudos alcançarão a plenitude de sua eficácia espiritual mesmo fora de toda a crença religiosa.

Os estudos escolares são um desses campos que encerram uma pérola pela qual vale a pena vender todos os bens, sem nada guardar para si, a fim de a poder comprar.

Fonte: Simone Weil in Attente de Dieu (Espera de Deus)