quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Aforismos (III)

Fidelidade e disponibilidade

A incapacidade de criar novas afeições aparece aos olhos dos nossos velhos amigos como um penhor de fidelidade. Antes se deveriam afligir com isso, porque é o sinal de um esgotamento afetivo que não poupa a nossa dedicação por eles. O ser impotente para criar novos laços nem sequer está em estado de manter vivas as antigas afeições, e a sua "fidelidade" assemelha-se muito à do esqueleto pelo túmulo ou à da pedra pelo lugar que ocupa. Assim, uma terra muito esgotada para que novos grãos nela possam germinar, também não tem força para alimentar as plantas que nela se encontram. Quer se trate de coisas do espírito, quer das coisas do coração, a grande ilusão dos idólatras do passado está em ter desconhecido que o nosso poder de conservação é rigorosamente proporcionado ao nosso poder de renovação e de criação. Também a fidelidade não é mais do que sabedoria e virtude de embalsamador.

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Progresso

Ultrapassei isso, dizes-me. Repara em ti mesmo. Não se abandona aquilo que verdadeiramente se ultrapassa. O ponto donde se vem, liga-se àquele para onde se vai, como numa paisagem o primeiro plano está ligado ao horizonte, e o olhar abarca um e outro no mesmo abraço. É preciso que a tua jornada de amanhã germine na tua jornada de ontem; na verdade, é preciso, não que avances pela estrada de modo a que cada passo gere o esquecimento do passo precedente, mas a que o caminho entre em ti. Assim, o teu horizonte alargar-se-á sem que tenhas de abandonar nada nem de trair nada. Tudo o que tiveres ultrapassado estará presente e vivo em ti.

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Equilíbrio e equilibrismo

Esse homem tem sempre medo de se comprometer, de ir longe demais, o menor esforço fá-lo estremecer, não tem maior preocupação que a de manter em todas as coisas o "justo termo". Será isso equilíbrio? De modo nenhum: isso é equilibrismo. O homem equilibrado abraça e harmoniza em si as tendências opostas (a vontade e a paixão, a prudência e a audácia, a lucidez e o entusiasmo, etc.); é como uma montanha cujo equilíbrio implica a existência de duas vertentes. E essa amplidão de base permite-lhe, precisamente, como a montanha cujo cimo se perde audaciosamente no céu, comprometer-se a fundo, descurar os meios termos e as preocupações; pode ir muito longe e muito algo sem perigo para o seu domínio interior; é suficientemente forte e rico para ser equilibradamente excessivo. O equilibrista, pelo contrário, está isolado da vida e toda a sua habilidade se reduz a manobrar sabiamente para ficar de pé no meio do turbilhão de forças adversas que o agitam e que não pode dominar. O primeiro, evita a queda aderindo totalmente à vida, o segundo, mantendo-se exterior a tudo. Ambos se escapam às correntes perigosas: um, porque comunga com a própria fonte do rio, o outro porque sabe "conduzir a sua barca".

Fonte: "O pão de cada dia" - Editorial Aster - Colecção Éfeso