sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Ars contemnendi

Acreditamos com facilidade na bondade dos homens e, quando eles nos desiludem, acreditamos com igual facilidade na sua profunda maldade: e isto é ainda muito lisongeiro para eles. Durante muito tempo, recusamo-nos a considerá-los tal como são, quer dizer, quanto à maioria, como seres insignificantes, meras superfícies, que reemitem todos os ruídos e refletem todos os raios. Acreditamos instintivamente na existência duma profundidade sob essas superfícies; pretendemos a todo o custo que as suas palavras e os seus atos possuam uma causa interior.

No fundo, o amor e o ódio são os nossos únicos sentimentos espontâneos: a educação do desprezo só se opera lentamente, tardiamente em nós. Assim, cremos ingenuamente na afeição "sincera" do amigo que nos exprime a sua simpatia, mas se alguma vez tomamos conhecimento de que o referido amigo fez a nosso respeito comentários desagradáveis, passamos a considerar estes últimos como a expressão autêntica da sua alma, e todos os seus interiores testemunhos de amizade nos aparecem como manobras hipócritas.

Na realidade, é a mesma necessidade universal de agradar, inerente a toda a impotência, a mesma incapacidade de se afirmar, de se opôr, de dominar as influências, a mesma ausência de opinião e de paixões pessoais, em resumo, o mesmo fenômeno de adaptação ao meio que dita as suas lisonjas na nossa presença, e a sua maledicência num círculo em que essas maledicências causam satisfação! Esse homem é igualmente sincero nos dois casos, se se entende por sinceridade a ausência de premeditação e de fraude, a espontaneidade de adaptação dos espelhos e dos cataventos; e igualmente hipócrita, se por hipocrisia se entende a falta de qualquer sentimento certo, profundo e durável.

O camaleão é cinzento enquanto caminha na areia; se passa por uma árvore a sua coloração torna-se verde; não é mais sincero nem mais hipócrita num sítio ou noutro: não deixa de ser nunca um camaleão. Os homens verdadeiramente maldosos são tão raros como os homens verdadeiramente bons, mas há muitos impotentes que imitam, de acordo com a direção do vento que os agita, tanto o bem como o mal.

Fonte: "O pão de cada dia" - Editorial Aster - Colecção Éfeso