sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Realidade social e miragem coletivista (I)

[SOCIALISMO E PROGRESSO
"Socialismo" é uma das palavras mágicas de nosso tempo, cuja simples enunciação desperta surtos de fé incondicional. A "socialização" é para muitos o caminho para a solução dos mais graves problemas com que se defronta o homem na hora presente.
Até que ponto, porém, êsse mito corresponde às esperanças que nêle tantos depositam? Até que ponto êle, longe de resolver, só faz agravar a condição degradada do homem moderno? Neste trabalho, que constituiu uma comunicação ao IV Congresso do "Ofício Internacional de Obras de Formação Cívica e de Ação Cultural segundo o Direito Natural e Cristão" (Lausanne, 1967), tem-se em vista exatamente examinar O CONFLITO ENTRE O COLETIVISMO E A PROMOÇÃO DO HOMEM.]

O homem é um animal social (zoon politikon): eis uma evidência indiscutível, confirmada pela experiência de todos os homens e de todos os séculos. Isso significa que ele tem essencialmente necessidade, para realizar sua natureza, da ajuda de seus semelhantes.

Um animal das florestas---uma raposa, por exemplo---não precisa de seus congêneres senão para nascer e para ser amamentado e protegido durante os primeiros dias de suas existência: após o que pode muito bem atingir a perfeição própria à sua espécie vivendo num isolamento absoluto. Os gansos vivem muito satisfeitos em bando, mas eu tenho no meu aviário um ganso que jamais viu um outro ganso em sua vida e que não se ressente disso.---Quanto aos animais que não podem viver senão gregariamente (as abelhas, as formigas, etc.), não se pode dizer que eles sejam aperfeiçoados por essa coletividade, porque eles não existem senão por ela, nela e para ela. Eu me inclinaria a adotar as novas teorias sobre a natureza de certos insetos, que afirmam que o verdadeiro indivíduo é o organismo coletivo em relação ao qual cada inseto se comportaria como uma célula num corpo.

No homem não há nada de parecido. O que seria o indivíduo ao qual seus semelhantes não tivessem ensinado a falar, a ler, a exercer uma profissão, a praticar a moral, a conhecer e a amar a Deus? Nada... nem mesmo um animal como os outros. A revolta contra a sociedade---tão frequente no homem---é ainda um fenômeno social: malfeitores organizados em bandos, grupos anarquistas, etc.

E o homem entretanto não é parecido aos insetos cuja dependência em relação à coletividade é absoluta. Porque a sociedade o desenvolve sem absorvê-lo.

Qual é então a natureza da sociedade? O homem aliena uma parte de sua liberdade---refiro-me à sua liberdade em estado bruto, isto é, esse poder indeterminado de fazer não importa o que à margem de qualquer hierarquia de valores---para atingir, graças à segurança e aos serviços que a sociedade lhe proporciona, uma liberdade mais alta, aquela que responde às melhores faculdades de seu ser e que lhe permite escolher o bem, o verdadeiro e o belo. Um selvagem na floresta é absolutamente livre de fazer o que queira, mas a hostilidade da natureza, a pressão incessante das necessidades biológicas e a falta de educação restringem singularmente sua liberdade de escolher e a mantém a um nível bem inferior.

A palavra civilização vem de civis (cidadão), o que implica na presença e na influência da sociedade. O homem civilizado, dizia Maurras, recebe ao nascer mais do que ele traz: ele é um herdeiro.

A sociedade é, pois, feita antes de tudo para a pessoa. Até as restrições e os sacrifícios que ela nos impõe são como uma poda efetuada na planta humana, que redistribui sua seiva e assegura o crescimento harmoniosos de seus ramos. O homem é uma teia de relações, ele vive por suas ligações: as modificações sociais alargam a solidão, dilatam a dimensão interior do indivídio. E é por isso que Santo Tomás diz em substância que o bem comum é o que mais profundo dos bens individuais, no sentido de que a sociedade nos faz participar dos valores supremos assim como na origem biológica nós participamos desses bens comuns que são o ar, a água ou a luz.

Porque a sociedade não é uma entidade distinta dos membros que a compõem nem superior a estes. Na sociedade, o vínculo é subordinado aos elementos que ele liga. Assim, uma empresa industrial não tem seu fim nela mesma: ela está ao serviço dos trabalhadores e dos consumidores; a pátria está ao serviço dos trabalhadores e dos consumidores; a pátria está ao serviço dos trabalhadores e dos consumidores; a pátria está ao serviço dos fios, porque só os fios têm uma alma imortal e votada a Deus. Em última análise, o fim supremo da sociedade civil ou religiosa é proteger e fazer desabrochar essa vocação divina da alma.

O teólogo protestante Vinet escreveu que a sociedade era para a alma o que o oceano é para o navio: o elemento, o meio que o mantém e que ele atravessa para atingir seu fim que é o porto. A pátria do navio não é o mar, mas sem o mar ele não encontraria jamais sua pátria. Essa metáfora representa muito bem a mediação social e a inalienável liberdade do homem que não encontra seu fim senão em Deus.

Continua...

Fonte: Revista Hora Presente (número 1 - set/out 1968)