domingo, 8 de novembro de 2009

Realidade social e miragem coletivista (II)

AMBIGUIDADE SOCIAL

Mas Vinet acrescenta: "pode-se naufragar no oceano da sociedade como no oceano de nosso globo e não há necessidade de perguntar em qual dos dois o naufrágio é mais frequente."

Nós tocamos aqui no problema da idolatria da sociedade, da absorção do homem pelo meio em que ele se situa.

E é ai que se evidência a ambiguidade do vínculo social: de um lado, frenando os apetites do eu individual, ele limita as devastações do egoísmo e do pecado; de outro, transpondo o eu para o "nós" (espírito de profissão, de casta, de classe, nacionalismo exclusivista e agressivo, fanatismo social ou religioso, etc.), ele reproduz, amplia e justifica o que o eu tem de pior. A história nos mostra que os mais sombrios instintos do indivíduo são ao mesmo tempo desencadeados e absolvidos quando são colocados a serviço do ídolo social. Um Robespierre, por exemplo, era um homem honesto que, se tivesse ficado na vida privada, não teria feito mal a ninguém: chefe político, ele sacrifica, sem o menor incômodo de consciência, milhares de franceses ao mito da revolução e da liberdade.

Assim o contágio social pode ser fator de expansão e de atrofia para a alma. É um lugar comum dos moralistas denunciar as caricaturas de virtude cujos critérios são apenas exteriores e sociais: farisaismo, moralismo, culto da respeitabilidade, arrivismo sob a máscara de devotamento ao bem público, etc. A casca se torna mais dura e espessa as expensas da seiva.

Desde que tomamos consciência dessa ambiguidade, nós nos colocamos a questão seguinte: qual é a melhor (ou a menos pior) forma de sociedade, isto é: aquela que melhor corresponde à natureza do homem e que o aproxima mais de seu fim divino?

Para responder, é preciso primeiro constatar que toda forma de sociedade comporta dois elementos: a seiva e a casca ou, se se preferir, a fonte e o canal: de um lado, o clima vivo, orgânico da Cidade, meio e veiculo dos valores que alimentam o ser interior (costumes, tradições, artes, religião, etc.), e de outro, o aparelho, o enquadramento legal da Cidade---por outras palavras, a lei natural, suporte da lei divina, e a lei escrita.

Aqui se impõe uma observação fundamental. As leis naturais, porque emanam do fundo imutável das coisas (o qual permite, na superfície, uma grande liberdade de movimento), são ao mesmo tempo permanentes no seu princípio e muito flexíveis nas suas aplicações: no limite, a obediência absoluta a Deus se confunde com a "santa liberdade dos filhos de Deus"(parere Deos liberta est, dizia Sêneca). As leis escritas, ao contrário, são ao mesmo tempo muito rígidas (elas não levam em consideração a diversidade dos indivíduos) e muito instáveis e cambiantes: basta, por exemplo, uma mudança de regime político para que o aparelho das leis e regulamentos seja modificado completamente. Elas fazem pouco da liberdade individual por sua uniformidade e a desorientam pela rapidez de suas mutações.

Constitui lei natural, por exemplo, que os homens, para realizar suas melhores possibilidades, devem viver num certo clima de segurança. Mas essa lei é muito elástica e os elementos desse clima podem variar ao infinito segundo as épocas, os lugares e os costumes. Ao contrário, os sistemas de segurança elaborados e impostos pelos poderes públicos formam uma rede de uma só vez muito rígida e muito complicada (por isso, frequentemente opressiva), mas ao mesmo tempo suscetível de modificações indefinidas.

Assim também para a família, realidade elementar, e a legislação familiar, o alcoolismo, vício contrário à lei natural, e os regulamentos contra o alcoolismo, etc.

Resulta disso que a melhor forma de sociedade é aquela onde o segundo desses elementos se situa no prolongamento do primeiro, onde a lei escrita vem apoiar e codificar a lei não escrita que emana, não somente da natureza universal do homem, mas ainda do gênio particular de tal ou qual nação. Sem nada idealizar (porque sempre existe uma distância e uma tensão entre esses dois polos da realidade social), o direito romano se inscrevia na linha do gênio do povo romano, a constituição helvética corresponde ao desejo íntimo dos habitantes da Confederação, a democracia e o direito consuetudinário britânicos foram elaborados em função do caráter anglo-saxão, etc. Aqui o direito escrito aparece como a rede protetora da lei natural.

Inversamente, uma sociedade degenera na medida em que o segundo polo (o da lei escrita) contraria ou absorve o primeiro---quando a pele abafa a seiva. "O que são as boas leis sem os bons costumes?", dizia Cícero. E Victor Hugo: "Na França, há dez mil leis e regulamentos entre nós e a liberdade". Neste caso, é o juridicismo contra o direito e a inadequação de todas as leis que são estranhas aos costumes ou simplesmente estão muito adiante dos costumes. Poder-se-iam invocar aqui sistemas de previdência social cujo bom funcionamento exigiria um grau de maturidade moral que o povo, no seu conjunto, está longe de ter atingido; o drama dos povos recentemente libertados da tutela colonial, certas leis contra o alcoolismo ou a prostituição e, mais geralmente, todos os ensaios de reforma que, por não estarem adaptados ao estado dos costumes, não fazem senão agravar os males que pretendem curar.

Resumamos. As melhores formas de sociedade são aquelas cujas estruturas comportam o máximo de vínculos vivos e interiores. Por outras palavras, aquelas em que a coletividade se organiza sob uma dupla influência: primeiro, aquela da necessidade elementar de polaridade biológica (a família, o grupo humano arejado em que cada um permanece ele mesmo em sua relação com o próximo, o trabalho, o pertencer comum a um solo, a um clima, a uma tradição, em resumo a Cidade em que o passado é o suporte e o alimento do presente e em que a hierarquia das funções se enraiza na diversidade das vocações); em seguida, aquela influência de um apelo espiritual representado por uma cultura e uma arte que traduzem o espírito de um povo, por uma religião ao mesmo tempo universal e encarnada. Uma tal sociedade prolonga, coroa, corrige se necessário, mas sem aboli-la, a diversidade humana; ela constitui uma síntese da qual cada elemento conserva e desenvolve sua integridade, sem justaposição nem mistura; a identidade do fim aí concorre para a expansão da diferença original que cada indivíduo traz em si.

Apressamo-nos a acrescentar que nenhuma formação social atende plenamente a esse ideal. Todas as sociedades estão mais ou menos em equilíbrio instável, todas apresentam imperfeições e fraturas (opressão, parasitismo, farisaismo, etc.) mas, sem realizar o bem absoluto, impossível de atingir aqui em baixo neste mundo, é já uma grande vantagem encarnar o menor dos males. Schopenhauer dizia que os reis que inscreviam no começo de seus ordenamentos: "Nós, pela graça de Deus" teriam estado mais perto da verdade dizendo: "Nós, dos males o menos, decretamos que..." Enfim, como os indivíduos, todas as formas de sociedade tornam-se caducas e as novas formas que as substituem, mesmo se (o que está longe de ser sempre o caso) estas constituem um progresso positivo em relação às precedentes, continuam fatalmente misturadas ao bem e ao mal.

Um só exemplo. O parasitismo social existia, no Antigo Regime, sob a forma do senhor ocioso e do cortesão e no no século XIX sob a figura do rendeiro não menos ocioso. Hoje, esses tipos humanos praticamente desapareceram, mas o número de parasitas em relação ao conjunto da população certamente não diminuiu. Citemos de memória os funcionários inúteis, os desfrutantes dos "trusts" ou do Estado e os inúmeros "trabalhadores" que exercem atividades supérfluas ou nocivas. Todas eles são parasitas, no sentido de que eles não proporcionam à coletividade o equivalente aos bens reais que eles consomem. E não creio que esse mal possa jamais ser totalmente eliminado.

Continua ...