Tu choras pelo que te falta. Não sabes, porém, que o que mais te falta, não é o que tu desejas, mas o que tu possuis? Porque tu fazes mau uso dele, e o mau uso das coisas é a pior das privações. A quem falta mais alimento reconfortador: àquele que tem fome ou àquele que vomita? Quem está mais privado de amor: a virgem que espera o amante que ela não conhece ainda, ou o devasso que enche de podridão tudo o que toca com os lábios? Qual está mais longe do verdadeiro Deus: o ateu revoltado pelo vácuo aparente do céu, ou o devoto que comprime a sua fé num coração do tamanho de um amuleto?--- Antes de gemer sobre a pobreza, pensa no uso que tu fazes da riqueza, e reconhecerás que, quanto pior é este uso, mais sede tens de outra coisa, para fazer dela um uso ainda pior, com o nada por horizonte. Enfim, o homem capaz de fazer um uso perfeito de tudo, ainda que nada tenha, nada lhe falta, porque Deus está nele e ele possui invisivelmente todos os bens na sua origem. Reciprocamente, o homem incapaz de sentir a centelha divina esparsa em todas as coisas, nada tem, ainda mesmo que possua tudo.
Fonte: "O olhar que se esquiva à luz" - Livraria Figueirinhas - Porto, 1957