terça-feira, 5 de janeiro de 2010

A informação contra a cultura (I)


DISTINÇÕES

A informação (palavra muito recente no sentido em que é usada hoje em dia) abarca as resenhas e as notícias que nos chegam pelos jornais, pelo rádio, pela televisão, etc. Pode-se defini-la como uma instrução limitada aos acontecimentos atuais.

Quais são as relações entre essa classe de instrução e a cultura?

Para responder essa questão é necessário analisar as diferenças que separam a instrução em geral (tal como se dá hoje em dia) da verdadeira cultura.

O dicionário, nesse caso, não nos ajuda muito, já que as duas definições são quase idênticas: cultura e instrução significam aquisição de conhecimentos.

É certo que tanto na instrução como na cultura há aquisição de conhecimentos. Mas esses conhecimentos não se situam no mesmo nível do espírito. Uma pessoa pode ser muito culta sem ser muito instruída, e pode ser muita instruída sem ser culta. Mais precisamente, toda cultura implica um mínimo de instrução, mas a recíproca não é verdadeira: pode-se ter muita instrução e não ter cultura alguma. É possível ser erudito ou "sábio" de uma maneira puramente mecânica e por efeito de uma doutrinação puramente externa. Fala-se frequentemente que um cachorro é sabido ou inteligente, mas ninguém ousa dizer que um cachorro é culto!

A instrução com relação a cultura é completamente extrínseca, e não é nada mais que uma acumulação de conhecimentos; não implica necessariamente a participação intríseca. Acrescentamos que na instrução o papel essencial é da memória, faculdade em grande parte material.

Se não se trata mais do que memória, um aparato registrador qualquer, um gravador, um disco, possui essa faculdade em seu grau máximo.

É claro que um cérebro eletrônico possui muito mais memória que um homem (e consequentemente mais instrução), visto que chega a resolver problemas que exigiriam a colaboração de milhares de cérebros humanos.

A cultura é outra coisa. Implica não só o conhecimento do objeto mas a participação vital do sujeito. Recordemos que a etimologia da palavra (colere, cultivar) evoca a agricultura. Uma terrra que se cultiva colabora com a germinação e crescimento dos grãos. Há participação da terra na transformação dos grãos em plantas.

A instrução, como tal, é tão estranha à vida profunda do homem, que usamos na maior parte das vezes termos materiais para designá-la. Falamos, por exemplo, da "bagagem intelectual" que queremos dar a nossos filhos, o que indica muito bem o caráter extrínseco da instrução. Nesse mesmo sentido, falamos em "encher a cabeça". Muitos estabelecimentos escolares não têm outro sistema pedagógico além desse, e neles, a formação humana dos alunos é sacrificada a esse tipo de "inchaço cerebral".

Aparece assim uma primeira diferença: a instrução é extrínseca, a cultura é intrínseca. Em outras palavras, diremos que a instrução é impessoal e a cultura é pessoal, quer dizer, integrada à vida peculiar do indivíduo.

Talvez haja a mesma diferença entre o homem instruído e o homem culto que entre o geógrafo e o explorador. O geógrafo conhece maravilhosamente o mapa e todos os lugares que estão nele marcados: cidades, montanhas, rios, oceanos, etc. O mapa não é mais que um decalque abstrato e impessoal das paissagens terrestres. O explorador visitou os lugares; talvez tenha conhecimentos menos extensos que o geógrafo, pois não foi possível a ele visitar todos os territórios indicados no mapa, mas de todos os lugares que percorreu guarda um conhecimento saboroso, particular e direto, que nasceu e morrerá com ele.

A instrução, como tal, não comporta diferenças de nível (ou se sabe, ou não se sabe), ao passo que a cultura é suscetível de um aprofundamento indefinido. Por exemplo: saber de cor um verso de Racine é típico da instrução, mas meditar sobre esse verso e encontrar em cada leitura novas ressonâncias interiores é o que caracteriza a cultura. O homem culto é o que estabelece entre os dados da instrução relações pessoais e inéditas. Era isto a que se referia Paul Valéry quando falava que preferia ser lido sete vezes pelo mesmo homem do que ser lido uma só vez por sete homens.

A cultura se aprofunda ao passo que a instrução não pode mais que estender-se. É por isso que podemos falar de uma cultura profunda e não de uma instrução profunda, mas apenas de uma intrução extensa.

A instrução se refere à superfície do saber, a cultura à sua espessura.

Um professor de filosofia me dizia um dia estas palavras que ilustram bem a diferença que acabamos de estabelecer: "os temas que expomos nas aulas de filosofia eram para seus autores realidades vividas; para nós, professores, não são mais que idéias e, para os alunos, não são mais que palavras."

Acrescentamos que a instrução se refere ao número, a quantidade de conhecimentos. Acontece muitas vezes da "bagagem" de um homem intruído ser ao mesmo tempo demasiada pesada e demasiada leve: pesada de memória e leve de reflexão, cheia de palavras vazias e vazia das realidades designadas pelas palavras. A cultura é o antídoto contra essa enfermidade da instrução que se chama verbalismo.

EXATIDÃO OU VERDADE?

É preciso neste ponto dissipar a confusão que existe ao redor da palavra "primário".

Ser primário, não é ter feito apenas os estudos primários, mas é, qualquer que seja o grau de instrução, confundir a realidade das coisas com as fórmulas pelas quais as designamos. É por exemplo, o caso de um determinado cientificismo que imagina ter esgotado uma realidade, uma vez que mediu e catalogou os aspectos quantitativos. É a postura que trata o mistério como uma ignorância passageira.

Victor Hugo definia as pretensões desse cientificismo em uma fórmula admirável: "o preço exato pela verdade". O exato é apenas o aspecto mais superficial da verdade. Infelizmente, a linguagem moderna, que traduz os progressos inconscientes do cientificismo em nosso pensamento, tende cada vez mais a confundir esses dois termos. Geralmente dizemos "é exato", quando queremos dizer "é verdade". Mas se queremos sondar o abismo que separa o exato do verdadeiro, tratemos de transpor essa linguagem para certos domínios do pensamento ou do sentimento. Imaginem um crente dizendo: Deus é a exatidão, no lugar de: Deus é a verdade. Ou uma jovem respondendo a um jovem que acaba de lhe declarar seu amor: É exato que me amas?

Continua ...

Fonte: Conferência proferida em Laussane (18 de abril de 1965).

Tradução livre deste blogueiro.