ABORDANDO O MISTÉRIO
Em última análise, a cultura se caracteriza por um aprofundamento da ignorância. O homem culto não é o homem que resolve, ou que acredita resolver, os problemas, mas é o que escavando os problemas, vê estender-se até o infinito o mistério que os recobrem.
Para o espírito primário não existe mistério, mas somente problemas. É um espírito que acredita que a margem do desconhecido que ainda subsisti na natureza desaparecerá pouco a pouco, na medida em que a ciência progrida. Mas para o homem culto, não existe apenas o desconhecido, mas também o incognoscível, e quanto mais avança no conhecimento das coisas, mais vê espessar-se o mistério, e sabe cada vez mais que não sabe nada, pois a realidade suprema não é acessível à inteligência discursiva.
Os cérebros eletrônicos resolvem todas as questões mas são incapazes de formular alguma. O próprio da inteligência e da cultura é saber interrogar, além de todas as soluções humanas, sobre o mistério da natureza e do destino.
A debilidade da instrução livresca está em apresentar aos homens soluções prontas, antes de que estes estejam em situação de se colocarem pessoalmente os problemas.
Vocês conhecem a origem da vocação de Sócrates. O oráculo havia proclamado que Sócrates era o mais sábio dos homens. Ele achou estranho, pois era consciente de sua ignorância. Mas persuadido de que o oráculo não poderia mentir, se dedicou a interrogar todas aqueles que se vangloriavam de sua ciência, e se deu conta de que aqueles homens, que acreditavam saber muitas coisas, na realidade não sabiam nada. Sócrates concluiu que o oráculo havio dito a verdade, pois ele sabia pelo menos que nada sabia.
Essa tomada de consciência da ignorância é essencial à cultura.
A cultura aparece assim como uma criação contínua enquanto que a instrução não é mais do que um inventário superficial. E para ressaltar esta diferença, voltamos a falar da distinção clássica de Gabriel Marcel, entre o problema e o mistério. A instrução consiste em resolver problemas que se criam fora, a cultura em participar interiormente de um mistério. Acrescentamos que a instrução se atem ao ter, enquanto que a cultura se une ao ser.
O TER E O SER
Já apliquei à instrução a palavra "bagagem"; se poderia aplicar à cultura a palavra "alimento". A bagagem concerne unicamente ao ter: nosso corpo não varia segundo o número e tamanho de nossas malas, mas se transforma segundo a qualidade de nossa alimentação. Do mesmo modo, a verdadeira cultura transforma o corpo do homem que a possui: é "ter" assimilado, digerido, e por isso, se transforma em "ser".
É a diferença que assinalava Montagne entre a "cabeça cheia" e a "cabeça bem feita". É alimentar-se não para encher ou para engodar, mas por apetite. A cultura não é somente um acréscimo externo; é um alimento que desenvolve e aperfeiçoa o sujeito que o assimila, e com isso se distingue perfeitamente da instrução. Lembremos da célebre frase de Edouard Herriot: "A cultura é o que sobra quando se esqueceu de tudo." É o que sobra quando os elementos externos da instrução (fatos, datas, fórmulas, citações, etc.) se foram do nosso espírito. É precisamente esse aprofundamento do ser interior, essa capacidade de reflexão e de crítica, esse apetite que nos permite receber e digerir novos alimentos. Mas para muitos homens instruídos, podemos aplicar a fórmula do antigo prefeito de Lyon e dizer que a cultura é o que falta quando já se aprendeu tudo. É o exemplo que nos dão tantos eruditos que sabem tudo e não entendem nada.
O tipo humano que corresponde ao que o século XVII chamava "um homem de bem", o "humanista" de hoje, é precisamente o homem culto no sentido que acabamos de definir. O homem no qual o saber, integrado em uma experiência vivida, é a expressão e prolongamento de seu ser. E é pelo número e pela influência de tais homens que podemos reconhecer a verdadeira civilização: aquela que consiste não apenas no domínio das coisas pela técnica, mas no florecimento dos espíritos e das almas através da sabedoria.
Continua ...