sábado, 13 de março de 2010

Aforismo

"É provável que uma ordem terrestre estável só possa ser instaurada se o homem conservar uma aguda consciência da sua condição itinerante"(Gabriel Marcel). Poderia dizer-se com verdade, se bem que pareça um paradoxo, que este mundo só proporciona uma pátria ao que nele se sente caminhante. Com efeito, o centro e a razão de ser da nossa vida terrestre, o lugar em que ela se enraíza e o lugar em que se expande, estão fora do mundo.

Um lugar de passagem, um campo de experimentação (a nossa vida não passa disso) perdem o seu sentido e o seu valor desde o momento em que desconhecemos a nossa condição. Os seres mais desorientados à face da terra são aqueles que só na terra acreditam (assemelham-se um pouco aos loucos que, ignorando a finalidade das pontes ou das escadas, estabelecem nelas a sua morada): a ruptura de vínculos, de tradições, de raízes, a perda do sentido do lar e da pátria e até dos valores mais humildemente materiais (uma boa cozinha, por exemplo), em resumo, o esvaziamento de tudo o que é estável, profundo ou refinado na vida terrestre e material, é o estigma fatal de todas as civilizações materialistas. Inversamente, a ordem social e a expansão dos valores terrestres acompanham as civilizações com uma forte polarização religiosa (excetuo parcialmente a Renascença onde, aliás, não faltava um potente impulso religioso, se bem que desviado do seu fim.)

Com efeito, se considerarmos nosso fim supremo e pátria de nossas almas os bens e os valores deste mundo, se transferirmos para eles a sede do absoluto e de eterno que há em nós, como cedo ou tarde chegaremos à amarga experiência da sua fragilidade, virar-nos-emos contra eles com toda a força da nossa esperança ludibriada e tê-los-emos em nada como castigo de não serem tudo. Assim se alternam a idolatria e o ceticismo, o culto da terra e o desgosto da terra (o espetáculo do mundo moderno comprova essa lei em todos os domínios). Claro está que este jogo de oscilações não favorece, nem nas almas nem nas sociedades, a instauração de uma ordem estável.

A noção de viático é, pelo contrário, a que melhor se ajusta aos bens deste mundo: ressalva simultâneamente o seu valor e os seus limites. Cá em baixo, tudo para nós é viático, inclusive as nossas moradas e as nossas pátrias. E é unicamente considerando-as como viáticos que podemos conservar uma atitude equilibrada (e estável, porque toda a estabilidade descansa sobre um equilíbrio) em face das coisas terrestres. Evitamos deste modo a idolatria: não se pede o absoluto a um viático, compreende-se de bom grado o seu caráter provisório e insuficiente, porque o que conta, antes de mais, é o fim a atingir. Mas evitamos igualmente o ceticismo e o desespero, pois, ainda que o viático não seja o absoluto é, no entanto, necessário para alcançar o absoluto, e a viagem para Deus não é possível sem ele. E é a transmissão e o enriquecimento deste viático enquanto tal, duma geração para outra, que torna os costumes sãos e estáveis, e as instituições sólidas.

Fonte: "O pão de cada dia" - Editorial Aster - Colecção Éfeso