quinta-feira, 29 de julho de 2010

Aforismos

Quanto mais um homem se torna um deus para si, mais necessidade tem de uma plenitude imediata, actual (de um "acto puro"); e quanto menos sabe esperar, menos ele acredita nas possibilidades e nos sonhos. Confunde sonho com nada; um bem que não apareça de maneira brutal, afigura-se-lhe irreal. É-lhe necessário gozar actualmente de tudo, ou se consente em possuir algumas reservas, é necessário que estas sejam facilmente mobilizáveis, actualizáveis (a reserva dinheiro enche maravilhosamente esta condição e nisso reside a sua situação de favor).

Querendo imitar deste modo a actualidade absoluta de Deus, declina necessariamente para o que há de mais pobre, de mais material em si e no mundo, porque aí está precisamente aquilo que mais facilmente se pode "despertar", controlar e utilizar. E escapam-lhe os bens mais verdadeiros e os mais profundos, porque são os menos aparentes, os menos manejáveis, e os que exigem um maior número de actos de esperança e de fé: Deus faz-nos pedir que venha o seu reino!

Esta necessidade mórbida duma "actualidade" divina contribui para que os espíritos e as almas modernas se fechem à noção e ao sentimento do sobrenatural: a graça, envolvida e aniquilada neste mundo pela natureza, é a coisa mais secreta, mais germinal que porventura existe, a que menos rende, a que menos "paga"na aparência: aquilo que no homem dorme mais profundamente, é Deus. É tão raro encontra num homem um Deus vigilante... Só os santos trazem ao mundo a presença actual e visível de Deus. Fora do clima de santidade, acreditar no sobrenatural, acreditar na graça, é acreditar no adormecimento de Deus nos homens.

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Todas as coisas criadas são intermediários, sinais, aparências. Mas algumas, dentre elas, são intermediários em segundo grau, sinas de sinais, aparências de aparências. Assim sucede com o dinheiro, as honrarias, os títulos, os prazeres artificiais, etc. E são precisamente estes fantasmas o objeto preferido da idolatria moderna, são estes bens ultra-relativos os que mais captam o nosso desejo de absoluto. Já se não adora o sol, as plantas ou os animais (que pelo menos têm o mérito de serem intermediários necessários entre o homem e o seu fim supremo), mas sim uma etiqueta política, uma condecoração, uma nota de papel.

Como o culto antigo de Cybelis, o de Cypris, ou mesmo o de Príape, que correspondiam às profundas realidades naturais, se revelam sãos e vivos em comparação com o culto actual dos mais vãos elementos da nossa existência! A idolatria moderna rege-se pela lei do menor coeficiente de realidade. E ainda quando se abate sobre coisas necessárias e naturais, as despoja da sua realidade, da sua substância, fá-las sobras e joguetes. Assim, a idolatria do amor sexual não adora, na mulher, a esposa ou a mãe tal como Deus a quis; substitui-a, segundo incida sobre o corpo ou sobre a alma, quer por um instrumento de prazer estéril, isto é, um ser degradado, quer por um produto de sonhos impossíveis, isto é, um ser imaginário. A idolatria antiga (pelo menos na sua fase inicial) elevava para Deus as coisas da natureza, enquanto que a idolatria moderna as degrada até ao nada.

Fonte: "O pão de cada dia" - Editorial Aster - Colecção Éfeso