domingo, 1 de agosto de 2010

Nel mezzo del cammin di nostra vita...

Detive-me em Champel, escalei a montanha de Vinobre, tornei a ver a casa onde a minha avó viveu em nova, e o seu horizonte familiar. Tudo isso permanecia exterior aos meus olhos, mas a minha alma reconheceu-o numa vibração dolorosa que vinha de mais longe que eu próprio. Toda a minha vida subterrânea, todas as minhas raízes estremeceram. Tudo o que a minha avó me contava outrora, essas pobres lendas de velha mulher que eu ouvia sem escutar, emergiram subitamente dos abismos do esquecimento: vi-a, criança, a correr por este caminho árido ao encontro de sua mãe que regressava aos sábados do mercado de Aubenas com uma fogaça de pão branco, rara e suprema guloseima; as suas emoções, as suas esperanças, o ciclo monótono dos seus trabalhos e dos seus dias reviveram no meu espírito, nimbados de uma plenitude esmagadora. Ela, que em toda a sua vida foi para mim tão indiferente, comunicou-me num relâmpago a sua alma e a sua visão do mundo. Essa montanha, esse horizonte, olhei-os por uns instantes com os seus olhos. A comunhão, a identidade que a sua presença jamais suscitara, voltei a encontrá-la ao contacto da nossa mãe comum, essa terra que a havia alimentado. Ante esta incursão do passado em mim, reconheci que atingira a segunda vertente da existência e que começava a descer para os mortos.

Fonte: "O pão de cada dia" - Editorial Aster - Colecção Éfeso