segunda-feira, 5 de setembro de 2011

A desigualdade, factor de harmonia (II)


Desigualdade orgânica e desigualdade anárquica


Não sei se o último soberano de Bizâncio, Constantino Dragases, que encontrou a morte nas muralhas da sua cidade, depois duma defesa heróica, seria entre os inumeráveis habitantes do Império, o mais digno do poder supremo; não sei, também, se o proprietário mais rico da minha aldeia, que trabalha, e faz trabalhar numerosos operários, "merece", de maneira especial, a sua riqueza. Mas sei, muito bem, que nem um nem outro gozam de privilégios artificiais: vejo-os no seu lugar, servindo para alguma coisa: o primeiro fazia o ofício de rei, o segundo o ofício de rico. Mas, se pelo contrário, penso em tal monarca moderno, que abandona o seu povo, depois de o ter exortado a lutar até à última gosta de sangue, ou em tal "felizardo" que ganhou a lotaria nacional, atolando-se no luxo e em prazeres imbecis, tenho a impressão muito nítida, de que estes dois homens foram objectos de um favor absurdo do destino; porque não estão no seu lugar, não servem para nada, não cumprem nenhuma obrigação...

Compreende-se: a desigualdade de situações e privilégios torna-se fictícia e injusta na medida em que já não corresponde à desigualdade das "missões", dos cargos e das responsabilidades. O rei que "deixe cair" o seu povo, e resida no estrangeiro, em palácios e casinos, onde a vida é fácil, é mau rei; o rico que não resgata a fortuna, quer por meio de iniciativas e benefícios, quer por meio daquela distinção e altura de sentimentos que a ociosidade por vezes favorece, é mau rico. Quando, não sei que senhor medieval, para explicar a diferença entre o nobre e o rústico, que, colocados ambos entre a morte e a vergonha, o rústico optaria pela vida e o nobre pela morte, definia, sumàriamente, o princípio da boa desigualdade: o risco ao lado do privilégio, o risco a equilibrar o privilégio... Infelizmente, a inclinação natural do egoísmo humano procura os privilégios sem riscos nem encargos. O que quer é subir, não como seria legítimo, para mais fàcilmente se dar, e se comprometer; mas para se safar com mais facilidade, para escapar a sarilhos.

Paradoxalmente, combina-se a sede de trepar, e o desejo de estar abrigado: quer-se estar tanto mais seguro, quanto mais alto, o que, precisamente, é absurdo. E as desigualdades, criadas por este estado de espírito, são anárquicas, por essência; como o prazer sexual, separado da função procriadora, não possuem nenhuma espécie de finalidade colectiva; assemelham-se a corpos estranhos no organismo social.

Este culto de falsa desigualdade, da ascensão sem mérito nem sacrifício, caminha, necessàriamente, a par com o culto do dinheiro. Na sociedade bem ordenada, a sorte pessoal dos chefes e dos poderosos está ligada à dos homens por eles governados, ou à dos bens por eles possuídos; o príncipe forma corpo com o seu povo, o senhor com a sua terra; a felicidade e a segurança destes homens dependem, em grande parte, da realização do seu dever social. O rico, pelo contrário, (enquanto possuidor de moeda anónima) não está solidarizado com nenhuma função precisa da cidade: seja qual for a sua abdicação ou a sua demisão dos deveres sociais, gozará em toda a parte, dos mesmos privilégios e da mesma segurança. Lembremo-nos dos reis exilados, dos financeiros cosmopolitas, ou até dos pequenos egoístas que vivem dos rendimentos...

A desigualdade artificial consiste, pois, antes de mais, na desigualdade financeira, sem base nem correctivo funcionais. A sociedade prova que está enferma na medida em que tende a fundamentar a hierarquia sobre a diferença morta das fortunas, em detrimento da diferença viva das funções. Esta tendência foi, como se sabe, o estigma indelével da sociedade capitalista...

Estas observações aplicam-se, não só a essa sociedade capitalista, mas também, à sociedade estatal: o funcionário, pago com a largueza e sem verdadeiras responsabilidades, goza de privilégios absolutamente tão artificiais como o proprietário de capitais anónimos. Ajuntemos, ainda, que os beneficiados pela falsa igualdade não são, necessàriamente, os que ocupam graus mais elevados da hierarquia social: sucede, assim, que quem lucra com a desarmonia colectiva são os "proletários".

Resumindo: para que a desigualdade seja legítima, não é necessário que se conforme pela diferença de valor pessoal, (o ideal, the right man in the right place, apresenta-se como uma assíntota...); basta que cada um exerça uma função orgânica que sirva o melhor possível, no seu lugar, o bem colectivo.

Origem de falsos igualitarismos

Permita-se-nos, agora, breve digressão psicológica pelas raízes deste terrível instinto de igualdade que perturba as sociedades.

O primeiro reflexo de igualitarismo este grito: "Porque não hei-de ser eu?" De que estado de alma brota o protesto? Tomemos um homem qualquer, que inveja a sorte de algum grande personagem e que diz: quem me dera no lugar dele! De que tem ele inveja neste destino superior? Será dos encargos, dos riscos, e até da austera alegria de servir? A maior parte das vezes, nem sequer pensa nisso... Ou serão, antes, o prestígio, a fortuna e todas as possibilidades de prazer e de repouso, que fazem corpo, no seu pensamento, com a situação da personagem invejada? A resposta é facílima... O instinto igualitário tem as mesmas origens que o instinto hedonista, é sinal da mesma decadência.

Com efeito, o hedonismo nasce do processo de desagregação afectiva, pela qual a sede de felicidade, natural a todos os homens, se separa da sede de agir, de se dar, de lutar, do arranque para a virtude, no sentido etimológico e mais amplo da palavra. No homem equilibrado, estes dois instintos encontram-se estreitamente ligados; a felicidade é coroa do esforço e do dom, e cresce em função da perfeição adquirida. O decadente, pelo contrário, não associa a ideia de felicidade à de perfeição e de ascensão; não conhece outra perfeição além do gozo e da segurança: Deus, para ele, não é pureza, mas felicidade e repouso. Assim, por pouco que se sinta inferiorizado na sua situação social, torna-se espontâneamente, igualitarista: nesta ordem de felicidade material e da recusa de servir, a única que existe para ele, diante dos privilégios sem missão, dos privilégios que permitem a demissão, o último dos homens pode, legitimamente, ambicionar os mais altos lugares. Diante do dinheiro, sobretudo: todos se sentem dignos de serem eleitos desta divindade anónima, todos se sentem capazes, enfim, de gozar e nada fazer! Não é aliás, por mero acaso que as épocas em que a primazia social é transferida para o dinheiro, sejam, também, aquelas em que lavra a pior febre igualitarista.

Mas estes operários que têm ciúmes da vida fácil do indolente frequentador de palácios, o velho camponês que a necessidade obriga ainda, para seu bem, a inclinar-se sobre a terra, e a quem a vazia ociosidade do vizinho aposentado, causa inveja, todos estes corações crispados num "porque não hei-de ser eu?" corrosivo, que invejam eles, na realidade, aos seus irmãos "privilegiados"? Por estranho que pareça, ambicionam o seu próprio nada! Dirigido para o privilégio sem deveres, para o pecado (porque a recusa de servir é a própria definição de pecado), o desejo de igualdade, torna-se o desejo do nada, vertigem de auto-degradação e de morte. Aqui residem o segredo e a lógica do "comunismo". Só há duas coisas absolutamente comuns a todos os homens: o nada original, o Deus que os criou. Se forem tão fracos, ou tão pecadores, que não consigam unir-se no culto de Deus, tenderão, sem remissão, para comungar neste nada. Mas não é ao nada, puro e simples, que vai dar o igualitarismo: o homem e a sociedade têm vida rija. Pecado capital contra a harmonia --- a qual não é mais que uma engrenagem de desigualdades, fundadas nas funções e deveres --- o igualitarismo gera o caos, ou, para dizer doutra maneira, substitui, no jogo das desigualdades orgânicas, um matagal de desigualdades, absurdas e esfomeadas, fruto da intriga e do acaso: de tudo o que há de menos humano no homem. É evidente, por exemplo, no dizer das testemunhas mais autorizadas, que o "comunismo" soviético, fundado, por direito, sobre a mais rígida igualdade, deu origem, de facto, às desigualdades mais revoltantes que a história jamais conheceu.

Continua . . .