domingo, 4 de setembro de 2011

A desigualdade, factor de harmonia (I)

A febre igualitária é um dos males mais profundos e mais graves da nossa época. Confessada, ou disfarçada, perturba, em todos os domínios, o equilíbrio da humanidade, e faz que embatam, entre si, numa competição sem saída, os indivíduos, as classes sociais e as nações. Por fim, chega-se a que qualquer um ache insuportável não ser igual a quem quer que seja, no que quer que for. O aventureiro aspira ao poder supremo; o "proletariado" pretende varrer as classes dominantes. Evidentemente, inventaram-se, para justificar esta doença vergonhosa, vocábulos cheios de grandeza: o pobre ataca o rico em nome do "direito à existência"; o tarado fisiológico que quer casar, desprezando todas as obrigações sociais, opõe, à sentença, o "direito ao amor". Mas todas estas palavras solenes não servem senão para tornar mais repugnantes a egoísta realidade que disfarçam.

Contudo, como todas as aberrações humanas, também estas aspirações insensatas têm algum fundamento no real. O igualitarismo --- considero esta definição capital --- representa a caricatura e a corrupção do sentido de harmonia e da unidade sociais. Portanto, qualquer crítica séria do igualitarismo implica um estudo preciso das condições desta harmonia e desta unidade. Não se consegue definir a doença, senão em função da saúde.

As desigualdades naturais e as desigualdades sociais

Se os homens são todos iguais, enquanto homens, encarnam, contudo, se assim me posso exprimir, em graus diversos, a essência humana. Basta comparar, entre si, indivíduos, povos, e raças, para verificar uma multidão quase infinita de desigualdades naturais. Os homens nascem desiguais, na saúde, na força física, na inteligência, na vontade, no amor, etc. Desigualdades que apresentam o carácter de necessidade absoluta: impossível escapar-lhes, ou remediá-las; e se são mal, são males incuráveis. Assim todos os espíritos sãos as admitem, não sòmente de facto, mas de direito.

A par destas desigualdades naturais entre os homens, observa-se a desigualdade nas funções e nos previlégios, inerentes à hierarquia social. Nem todos os homens têm a mesma categoria na cidade, pois nem todos são igualmente poderosos ou igualmente ricos... E aqui, impõe-se-nos uma observação fundamental: estas desigualdades sociais não estão decalcadas sobre as desigualdades naturais. É mesmo raro que os seres mais dotados pela natureza sejam os detentores do poder e da fortuna. Esta separação entre dons naturais e missão social, exprime-a muito bem a Escritura: "Vi além disso, que, debaixo do sol, a corrida não é ganha pelos ágeis, nem a guerra pelos valentes, nem o pão pelos sensatos, nem a riqueza pelos inteligentes, nem o favor pelos sábios, porque tudo depende, para eles, de tempo e circunstâncias". [Eclesiastes 9: 11 - No texto original, em francês, Thibon utiliza a Bíblia "Louis Segond, 1910"]

É fácil de ver que tal margem de contingência entre as capacidades naturais do homem e a sua posição social, inspirasse dúvidas sérias acerca da legitimidade de certas desigualdades. Que, entre dois homens, um seja forte e outro fraco, um inteligente e o outro estúpido, ninguém pode nada em contra. Mas que um seja príncipe e o outro plebeu, um rico e o outro miserável, instintivamente sentimos que tal diferença nada tem de fatal, e que, em muitos casos, a relação poder-se-ia revirar sem prejuízo. E assim, nova questão se levanta.

Problema da desigualdade artificial

Os espíritos simplistas têm tendência a considerar as desigualdades sociais como artificiais. A questão está em entender-se sobre o sentido desta última palavra. Se, por ela, se quer dizer que as diferenças sociais não se impõem, com aquele peso de necessidade primária e directa que caracteriza as diferenças naturais, e que são, em parte, obra do homem, como uma casa, um poema, um campo cultivado, etc., estamos de acordo. Mas, se artificial pretende significar fictício, irreal, e, por conseguinte, ilegítimo e digno de ser destruído, então, mais devagar. Porque a natureza humana implica a vida em sociedade, e a vida em sociedade é hierarquia e suas diferenças. O artificial das desigualdades sociais é natural em segundo grau: é produto espontâneo da natureza de um ser que é feito para criar e organizar.

Certamente, poderá retorquir o igualitarista. Mas o que eu denuncio como artificial não é o princípio das desigualdades sociais; é o facto de estas desigualdades repousarem, tão escassamente, em diferenças naturais. O que é injusto, e que é preciso destruir, é o estado social em que se observa tal divórcio entre as capacidades dos homens, por um lado, e a sua missão e privilégios, por outro.

O argumento não colhe. A diferença de situação social ou de fortuna, entre dois homens, não merece condenação pelo simples facto de não se apoiar numa desigualdade natural. Qualquer cidadão, bem dotado, pode sempre dizer, de si para si, com justiça, diante das faltas de tal monarca ou de tal financeiro: Porque não eu? Usaria melhor o poder ou a fortuna, do que aquele homem. Mas a resposta é fácil: que meio tem você para se apoderar deste poder ou desta fortuna? Já tem a receita infalível, capaz de levar, "automaticamente", os mais dignos ao cume da escala social? Se tem, então, as reinvidicações são legítimas... Rousseau assinalando, não sem razão, no Contrato Social, as falhas da hereditariedade, ajuntava que a democracia electiva confiaria o poder, quase que por necessidade, ao escol da nação. Mas ai! Basta olhar para os novos senhores que nos outorgou, desde há mais de um século, o sistema eleitoral, do qual se esperava a idade de oiro, para sabermos que o fosso entre as desigualdades humanas e as sociais não tende a diminuir. Os acasos do struggle for life revelaram-se mais desastrados ainda, do que os do sistema hereditário...

Seria, certamente, para desejar que a hierarquia social estivesse baseada na hierarquia natural. Mas, tal harmonia representa um ideal para o qual a boa sociedade deve tender incessantemente, sem esperar jamais realizá-lo plenamente. Se bastasse, para rejeitar qualquer sistema social, verificar que ele não trazia, forçosamente, os melhores para os primeiros lugares, todas as formas de sociedade deveriam ser eliminadas em bloco...

Contudo, ainda fica que os diversos sistemas sociais são desigualmente imperfeitos; e, feita justiça aos exageros igualitários, é certo que ainda temos muita artificialidade, no mau sentido da palavra, nas desigualdades sociais. E o problema ricocheteia, outra vez: que é uma desigualdade artificial?

Continua . . .

Fonte: "Diagnósticos, Tratado de Fisiologia Social" - Livraria Cruz, Braga - 1962