quarta-feira, 7 de setembro de 2011

A desigualdade, factor de harmonia (III - Final)


Desigualdade e Harmonia


Ouçamos uma melodia. Cada nota ocupa lugar diferente na escala dos sons; todos os elementos musicais (até os próprios silêncios) são desiguais entre si, e, sem essa desigualdade, não teríamos melodia. E muito menos, se se suprimisse, entre os seus diversos elementos, aquela espécie de igualdade profunda que resulta da comunhão, da fusão na unidade do mesmo todo: nessa altura, não teríamos mais que um caos de sons.

Ora, esta dupla exigência de igualdade e desigualdade vamos reencontrá-la na escala da sociedade humana. À noção planificada de igualdade, importa substituir a noção profunda de harmonia. A única igualdade, real e desejável, entre os homens, não pode residir nem nas naturezas, nem nas funções; não pode ser senão igualdade de convergência. Assenta sobre a comunhão, e a comunhão não vai sem diferenças: os grãos de areia do deserto são todos idênticos e estranhos uns aos outros...

Em toda a harmonia, a interdependência corrige e coroa a desigualdade: as notas duma melodia ligam-se bem entre si, na unidade do conjunto, que, tomadas separadamente, ficariam sem alma nem função. Assim deveria ser na vida social. Não se dando a rasoira impossível e catastrófica da comunidade de deveres e privilégios, é necessário que exista, entre os homens, e sobretudo entre dirigentes e dirigidos, uma espécie de comunidade de destino. Os verdadeiros chefes são, para o povo, a cabeça, ao mesmo tempo, que dele são distintos e a ele unidos: a cabeça e o corpo vivem, sofrem e morrem juntos... Mas os maus mestres --- ainda que sejam, quase todos, ardentes igualitaristas, e que pretendam, com falsa e lisonjeira humildade, identificar-se com o povo --- são estranhos àqueles que dirigem, não servem de cabeça a ninguém, e toda a sua habilidade consiste em manejar, exteriormente, e para proveito pessoal, os reflexos dum corpo decapitado...

Assim, somos levados a formular a seguinte lei: a instituição é boa na medida em que favorecer esta salutar interdependência entre os membros da hierarquia social. Organizações como o sistema feudal e o sistema corporativo do antigo regime serviam para este fim; e se sucumbiram não foi por vício formal, mas por carência de pessoas. Pelo contrário, é evidente que os mitos sociais que dominaram o século XIX (capitalismo, sufrário universal, funcionarização dos cidadãos, etc.) são insalubres por princípio, poque atomizam os homens. Não é só de alguns retoques, mas de se refazerem, totalmente, que as instituições modernas têm necessidade.

Missão da França Cristã

É para nos causar horror o pensarmos nos abismos de miséria e corrupção que submergiriam os povos se, depois da febre e da hemorragia guerreira, nos encontrássemos colocados num clima moral e político, semelhante àquele que se seguiu à última guerra.

Esgotadas como estão, não é possível que as estruturas sociais de agora resistam, muito tempo, à crise que as abala, e que é obra sua. Não há ninguém que não esteja de acordo em prever e desejar, para breve, a eclosão dum novo mundo. E se esta espectativa for cumulada, podemos estar seguros que o génio e o coração francês para ele haverão de contribuir.

O povo francês possui, com efeito, em grau único, o duplo sentido da igualdade e da desigualdade. Não há outro tão individualista, tão rebelde ao espírito gregário: em França, observam-se, no que diz respeito às funções e precedências sociais, as desigualdades mais numerosas e subtis: somos o povo que apresenta o máximo de "distinção" (no duplo sentido da palavra) e, por consequência, o mínimo de igualdade. Mas somos, também, o povo em que a consciência da igualdade profunda entre os homens, se afirmou, quando saudável, com mais justiça, e quando corrompida, com maiores devastações. Depois do "quem te fez rei?" lançado, por um súbdito, à cara do primeiro dos Capetos, e desse "lodo comum" que Bossuet recordava aos grandes, tivemos, ai de nós! a terrível mística igualitária da Revolução Francesa...

Seguramos as duas pontas da cadeia, a nós pertence unir, em síntese harmoniosa, o espírito de desigualdade e o espírito de igualdade. em vão nos entregaríamos, agora, a antecipações fantasistas, se pretendêssemos o desenho exato da cidade futura. O que se pode prever, com certeza, é que ela não escapará à maré devoradora do materialismo, a não ser que vejamos renascer instituições aparentadas ao corporativismo, na ordem económica, e ao espírito da cavalaria e do sacerdócio, na ordem poítica. Sòmente tais instituições estarão à altura de refrear, eficazmente, o igualitarismo, substituindo à desigualdade material e qunantitativa, uma desigualdade voltada para a qualidade e para o espírito; ou, pelo menos, fazendo da primeira não já valor absoluto, mas, simplesmente, suporte ou instrumento da segunda. E, ao mesmo tempo, tais instituições trabalharão por restabelecer uma saudável igualdade, porque a matéria divide e o espírito unifica.

O nosso ideal rejeita, conjuntamente, tanto o igualitarismo que quer apagar as diferenças sociais, como aquela falsa mentalidade aristocrática que tenderia a endurecê-las em diferenças de essência (seria ridículo que o chefe desse em retorno o amor que lhe dedicam, lá dizia Aristóteles...) O ideal consiste em purificar e organizar as desigualdades, tem em vista uma igualdade mais profunda, ou melhor, em pôr a desigualdade ao serviço da unidade.

Mas que será essa unidade, senão o amor, e que será o amor, senão Deus? Através das desigualdades naturais e sociais, todos os homens sentem, obscuramente, que procedem da mesma origem e concorrem para o mesmo fim. O mau igualitarismo nasce do inteiriçamento egoísta desta intuição, que não é verdadeira senão na linha do amor: como todas as grandes aberrações do home, deriva da recusa da condição de criatura e da ambição de ser como Deus. A verdadeira igualdade é fruto de amor comum; pressupõe, portanto, o esquecimento e o dom de si mesmo. Mas, se cada um não pensar senão em si, se o inferior se congelar na inveja, e o superior no privilégio, que nome daremos à febre de igualdade que surgiu num mundo desses? Não é, então, mais que um pretexto ou estandarte nesta luta, tão antiga como o pecado, entre os pequenos deuses famintos que consideram injustiça absoluta, mas reparável, toda a limitação à sua vontade de gozo e de poder, que cada um quer possuir, só para si e em totalidade. É, de facto, uma lei fatal: os homens que se afastam do amor comum estão condenados ao ódio recíproco. E o espírito de igualdade procede, necessàriamente, de uma ou outra destas duas origens. Assim, não há estrutura social sólida sem ambiência religiosa. Só há um amor que é capaz de aproximar, eficazmente, os homens: o amor supremo. E todos os mitos, em nome dos quais se pretenderam unir os homens, com exclusão de Deus, multiplicaram a separação e a anarquia. Quem não ajunta comigo, dispersa...

A França não reencontrará a sua missão senão reencontrando o seu Deus. Ignorando esse Deus, a Revolução de 1789 o que fez foi desviar para o nada a grande idéia cristã de igualdade; o mundo espera, agora, uma revolução francesa cristã.

O igualitarismo ateu é maligno porque não tem outra saída, senão ir roendo, até ao nada, as diferenças humanas. Mas o igualitarismo cristão é saudável porque fundado sobre o ultrapassar, e não sobre o extinguir destas diferenças: prolonga-se até à sua origem e fins comuns, que são o amor eterno. E é assim que se realiza, na unidade deste amor, a síntese de igualdade e desigualdade.

Fonte: "Diagnósticos, Tratado de Fisiologia Social" - Livraria Cruz, Braga - 1962