"Os tempos mais incertos são os mais seguros, porque sabemos aquilo a que podemos aternos"--- escrevia, há cem anos, Donoso Cortés. É certo que as épocas tormentosas fazem-nos sentir que a terra não é nossa pátria. Mas os tempos calmos e prósperos não nos dão igual lição? A terra tem duas maneiras de trair os nossos votos: ou recusando-nos os bens que pode dar (saúde, paz exterior, prosperidade material, etc.) ou mandando-no-los com tal abundância que põem em foco a sua vaidade. A bem dizer, esta segunda via é a mais segura: enquanto o homem é privado dos bens aparentes, pode ainda acreditar no seu valor, mas quando, depois de ter comido à farta, sente ainda a fome e o vazio, não tem mais ilusões acerca dos alimentos terrestres. A decepção verdadeiramente incurável não está no revés, mas no rasto do nada que se segue ao êxito. É talvez necessário que o homem esgote todas as possibilidades de sua condição terrestre, para que se convença de que é um exilado.
Mas estas possibilidades são agora inesgotáveis, dirão os adoradores do homem e do progresso. Sem dúvida, será banal ir amanhã passar um "fim-de-semana" na Pérsia ou no Colorado e a terra não será mais do que um arrabalde para os nossos desejos. Mas outros mundos nos esperam e novas conquistas se nos oferecem, ficando a perder de vista as façanhas de Alexandre ou de Colombo --- simples brinquedos de crianças na areia.
Nada mais há além da terra, começava o homem a suspirar, e logo os rumos do céu principiaram a abrir-se...
Surgem duas respostas.
Supondo que tais aventuras sejam possíveis (e é aos homens de ciência e depois aos acontecimentos que pertence decidir) Não encontraremos nós, na pluralidade infinita desses mundos, o que o Evangelho chama o mundo, isto é, o lugar do nosso exílio e das nossas esperanças malogradas?
Suprime-se esse exílio, recuando as fronteiras? Napoleão ter-se-ia sentido menos exilado na imensa Sibéria do que na minúscula Santa Helena? O que quer que seja que façamos ou vamos para onde for, não ficaremos aquém do véu das aparências e na vertente temporal do ser?
Mesmo dilatando até aos confins da via láctea, o nosso vale de lágrimas não mudará de natureza e, quando tivermos alargado o campo da nossa visão a todas as aparências que a vista pode contemplar, nem por isso teremos transposto o limiar do mundo invisível. Nós podemos variar os nossos sonhos até ao infinito, acrescentar inumeráveis decorações ao "grande teatro do mundo": permaneceremos sempre os actores da mesma comédia e as vítimas do mesmo drama, sem ter levantado uma ponta do véu da morte, nem penetrado no mistério da vida incógnita, que se esconde por detrás desse véu...
"A morte vai, pois, tornar-se inútil"! exclamava há um século Vitor Hugo, num pressentimento maravilhoso das viagens futuras do homem entre os astros.
Que modéstia nesta concepção da morte reduzida ao estado de embarcadouro para algum cruzeiro interestelar! A morte não existe para nos revelar o que os olhos não vêem ainda, mas aquilo que jamais eles podem ver...
Assim, este mundo, fabulosamente dilatado, permanecerá incapaz de nos dar o absoluto, que ele não contém e que a nossa alma reclama. Mas poderá apenas dar-nos todas as suas riquezas relativas? Admitindo mesmo que conquistamos o universo, deixaremos de ser homens --- e que meio teremos para ampliar a nossa natureza à medida das nossas conquistas? O limite, o perigo de esgotamento não está no objecto mas no sujeito. Onde encontrar as entranhas aptas a assimilar todos os bens que caírem desta cornucópia estelar de abundância?
Novidades inegotáveis ser-nos-ão oferecidas, mas por que milagre saberemos manter o aguilhão da curiosidade e a embriaguez da descoberta? A experiência demonstra que a extensão das possibilidades materiais provoca em regra a atrofia das faculdades receptivas e que os "esgotados" se recrutam entre os ricos e os poderosos. Se isto é já verdadeiro neste nosso pequeno planeta, que virá a ser na escala do universo? E que oceano de aborrecimento e tédio não espreita os gozadores dum mundo sem margens? O perigo é tanto maior quanto o universo material implica uma concentração quase absoluta do espírito sobre a criação e a prática dos meios materiais proporcionados a este fim e, por conseguinte, (já que o homem não pode expandir-se ao mesmo tempo em todos os sentidos) um esquecimento correlativo das realidades da vida interior: duas coisas que caem a fundo sob o golpe da advertência eterna do Evangelho: "Que aproveita ao homem ganhar todo o mundo, se por fim vem a perder a sua alma?" O homem perderá talvez a alma para conquistar o universo e, perante o universo conquistado, será sem alma para o gozar, de sorte que encontrará na sua suprema vitória a mais mortal derrota. Então, mais do que nunca, o que restar da alma deverá voltar-se para o invisível; porque no fundo do universo profanado, Deus esperará sempre a sua criatura. O que se passa actualmente na América, onde os melhores, cansados das facilidades dum mundo sem mistério, se refugiam na vida contemplativa dos claustros, é talvez a prefiguração dos tempos vindouros. O homem, atingindo os limites do possível e sempre prisioneiro do mundo e de si mesmo, não terá outra saída senão do lado do impossível e compreenderá sem remissão que ele foi feito não para o ilimitado, mas para o infinito.
Fonte: "O olhar que se esquiva à luz" - Livraria Figueirinhas - Porto, 1957
Mas estas possibilidades são agora inesgotáveis, dirão os adoradores do homem e do progresso. Sem dúvida, será banal ir amanhã passar um "fim-de-semana" na Pérsia ou no Colorado e a terra não será mais do que um arrabalde para os nossos desejos. Mas outros mundos nos esperam e novas conquistas se nos oferecem, ficando a perder de vista as façanhas de Alexandre ou de Colombo --- simples brinquedos de crianças na areia.
Nada mais há além da terra, começava o homem a suspirar, e logo os rumos do céu principiaram a abrir-se...
Surgem duas respostas.
Supondo que tais aventuras sejam possíveis (e é aos homens de ciência e depois aos acontecimentos que pertence decidir) Não encontraremos nós, na pluralidade infinita desses mundos, o que o Evangelho chama o mundo, isto é, o lugar do nosso exílio e das nossas esperanças malogradas?
Suprime-se esse exílio, recuando as fronteiras? Napoleão ter-se-ia sentido menos exilado na imensa Sibéria do que na minúscula Santa Helena? O que quer que seja que façamos ou vamos para onde for, não ficaremos aquém do véu das aparências e na vertente temporal do ser?
Mesmo dilatando até aos confins da via láctea, o nosso vale de lágrimas não mudará de natureza e, quando tivermos alargado o campo da nossa visão a todas as aparências que a vista pode contemplar, nem por isso teremos transposto o limiar do mundo invisível. Nós podemos variar os nossos sonhos até ao infinito, acrescentar inumeráveis decorações ao "grande teatro do mundo": permaneceremos sempre os actores da mesma comédia e as vítimas do mesmo drama, sem ter levantado uma ponta do véu da morte, nem penetrado no mistério da vida incógnita, que se esconde por detrás desse véu...
"A morte vai, pois, tornar-se inútil"! exclamava há um século Vitor Hugo, num pressentimento maravilhoso das viagens futuras do homem entre os astros.
Que modéstia nesta concepção da morte reduzida ao estado de embarcadouro para algum cruzeiro interestelar! A morte não existe para nos revelar o que os olhos não vêem ainda, mas aquilo que jamais eles podem ver...
Assim, este mundo, fabulosamente dilatado, permanecerá incapaz de nos dar o absoluto, que ele não contém e que a nossa alma reclama. Mas poderá apenas dar-nos todas as suas riquezas relativas? Admitindo mesmo que conquistamos o universo, deixaremos de ser homens --- e que meio teremos para ampliar a nossa natureza à medida das nossas conquistas? O limite, o perigo de esgotamento não está no objecto mas no sujeito. Onde encontrar as entranhas aptas a assimilar todos os bens que caírem desta cornucópia estelar de abundância?
Novidades inegotáveis ser-nos-ão oferecidas, mas por que milagre saberemos manter o aguilhão da curiosidade e a embriaguez da descoberta? A experiência demonstra que a extensão das possibilidades materiais provoca em regra a atrofia das faculdades receptivas e que os "esgotados" se recrutam entre os ricos e os poderosos. Se isto é já verdadeiro neste nosso pequeno planeta, que virá a ser na escala do universo? E que oceano de aborrecimento e tédio não espreita os gozadores dum mundo sem margens? O perigo é tanto maior quanto o universo material implica uma concentração quase absoluta do espírito sobre a criação e a prática dos meios materiais proporcionados a este fim e, por conseguinte, (já que o homem não pode expandir-se ao mesmo tempo em todos os sentidos) um esquecimento correlativo das realidades da vida interior: duas coisas que caem a fundo sob o golpe da advertência eterna do Evangelho: "Que aproveita ao homem ganhar todo o mundo, se por fim vem a perder a sua alma?" O homem perderá talvez a alma para conquistar o universo e, perante o universo conquistado, será sem alma para o gozar, de sorte que encontrará na sua suprema vitória a mais mortal derrota. Então, mais do que nunca, o que restar da alma deverá voltar-se para o invisível; porque no fundo do universo profanado, Deus esperará sempre a sua criatura. O que se passa actualmente na América, onde os melhores, cansados das facilidades dum mundo sem mistério, se refugiam na vida contemplativa dos claustros, é talvez a prefiguração dos tempos vindouros. O homem, atingindo os limites do possível e sempre prisioneiro do mundo e de si mesmo, não terá outra saída senão do lado do impossível e compreenderá sem remissão que ele foi feito não para o ilimitado, mas para o infinito.
Fonte: "O olhar que se esquiva à luz" - Livraria Figueirinhas - Porto, 1957