domingo, 7 de novembro de 2010

Psicologia e desespero

Se há uma forma particularmente perversa da "exploração do homem pelo homem", é este furor de introspecção, de autofagia intelectual que consiste em procurar exclusivamente no conhecimento do homem a solução dos problemas humanos, este impudor do espírito reflexo que desnuda a alma até às raízes e até aos fundamentos, como uma planta arrancada, a uma luz que ilumina sem mentir, esta vivissecção psicológica que, sob a cor de sinceridade e de "teste" se estadeia em todos os ramos da literatura, desde o estudo científico objectivo até a confissão pessoal.

O nudismo físico não é mais que um passatempo de crianças ao pé das múltiplas formas deste nudismo moral que se insinua nos costumes a pouco e pouco. Estão em moda as confidências públicas. Nós não compreendemos muito bem como é que estas duas palavras possam casar-se: vasculha-se, até aos seus últimos recantos, a vida privada das personagens célebres; garotas falsamente cândidas escrevem livros para nos contar as peripécias da sua iniciação sexual, e como perderam uma virgindade que, sem dúvida, jamais possuíram senão no corpo; todas as intimidades, normais ou anormais, são reveladas, divulgadas, medidas, postas em equações e em diagramas, e o vício torna-se, segundo a expressão de Proust, uma ciência exacta. O pior, de tudo isso, não é o mau gosto e a imoralidade, mas o perigo de esgotamento e esterilidade. Este "psicologismo", com efeito, devora-se a si mesmo e leva a um beco sem saída, porque o homem assim explorado até às entranhas e até no que elas contêm, dentro em pouco nada poderá oferecer para alimento dos demónios da curiosidade e do exibicionismo. "Ah! tudo está bebido, tudo foi comido; nada mais há a dizer..." Chegamos ao ponto em que o homem nada mais terá a aprender sobre o homem. Coisas, talvez banais em si mesmas, mas veladas e impregnadas até aqui dum mistério fecundante e que cada um podia redescobrir por sua própria conta com o deslumbramento do viajante que pisa uma terra virgem, perdem ao mesmo tempo as suas trevas e a sua magia: a terra incógnita, a última Thulé do desejo e do sonho transforma-se em jardim público!

Esta saciedade provoca o fastio e, por contraposição, a necessidade de aperitivos e condimentos mais enérgicos, de revelações mais sensacionais. Mas os próprios condimentos enfastiam, o sensacional embota-se, e o que ontem se tomava como um estimulante toma-se hoje, como uma tisana insípida. E o homem volta a girar em torno de sua gaiola iluminada até aos seus últimos recantos pelos projectores da introspecção. Que capítulo não poderia escrever-se sobre a psicologia parasita da alma!

É verdade também, em virtude desta polaridade misteriosa que liga o mal ao remédio, que este clima de tédio e desespero faz apelo irresistìvelmente ao raiar duma nova esperança. A viagem à volta de si mesmo, tendo esgotado todas as suas reservas de imprevisão, convida o homem a fugir para além dele próprio: o nosso espírito, saturado de tantos mistérios violados, só encontra saída e refúgio no único mistério inviolável: o da sua relação com Deus. Da sua relação vivida e não expressa, porque a expressão leva-o ao seu termo humano, demasiadamente humano...

Deste ponto de vista, haveria muito a dizer de uma literatura que faz da alma e da vida interior do sacerdote o objeto duma curiosidade perturbante e não sei que deleite moroso. Esta exploração metódica da mina sacerdotal veio em substituição das odiosas calúnias anticlericais do último século. É uma nova maneira de difamar o sacerdote, mais íntima e refinada que a antiga, mas infinitamente mais perversa. Outrora, fazia-se em bocados e traçava-se uma imagem do mau padre, tão artificial na sua baixeza como o cromo do bom padre na sua pseudopureza; hoje, sorvem-se a pequenos goles os segredos da alma sacerdotal. Em vez da mandíbula que dilacera, ficou a língua que saboreia, mas é sempre o padre que se dilacera e Deus está ausente do festim.

Reponder-se-á que não pode explorar-se a alma do padre sem encontrar Deus que a habita. Sim, mas sob que aspecto e em que condições? A curiosidade psicológica mal se acorda com o sentido divino. O que há de essencial na padre é precisamente o que ultrapassa toda a psicologia: a sua renúncia, a sua transparência, o esquecimento de sua pessoa e dos seus limites em prol do mistério que ele transmite. O padre não irradia por si mesmo, mas, à maneira dos corpos diáfanos, pela luz que o atravessa; e a análise psicológica esquece por fatalidade essa luz muito simples para estudar nas suas minúcias a estrutura do corpo diáfano.

Fonte: "O olhar que se esquiva à luz" - Livraria Figueirinhas - Porto, 1957