domingo, 21 de novembro de 2010

Gustave Thibon e o Aforismo

O aforismo é um gênero literário: tem os seus limites, mas tem também o seu valor. Jules Lemaitre, numa página tão brilhante como superficial, tentou ridicularizar o aforismo, pondo a descoberto os artifícios que presidem à sua confecção. E, sem dúvida, não é difícil, manejando o lugar comum, a antítese ou o paradoxo, fabricar em série máximas sem substância. Mas prova isso alguma coisa? Ficarão os outros gêneros literários ao abrigo da facilidade e do verbalismo? Não haverá artifícios igualmente usados para redigir uma tragédia em cinco actos, um poema em doze cantos, um romance ou uma tese de filosofia? Quer proceda por saltos, como no aforismo, quer se alongue por obras perfeitamente compostas, o pensamento dum escritor pode ser igualmente medíocre ou profundo: só o génio dá solução ao debate. A originalidade, a unidade da inspiração são tão fáceis de atingir na obra de um Pascal, de um Rochefoucauld ou de um Nietzsche como na de um Spinoza ou de um Bergson. Se o leitor não está satisfeito com os meus aforismos, se neles apreende mal o sentido e a conexão, não é o instrumento que deve acusar, mas o artífice...

Encontro, em velhas notas, alguns juízos sobre o aforismo que me permito transcrever aqui, porque correspondem bem ao meu pensamento.

"A máxima, dizia eu, é mais um excitante do que um alimento: exige da parte do leitor muito mais finura e espírito de síntese do que uma obra composta(arranjada). Deixa-lhe o cuidado de evocar, de completar e de unificar, abre um vasto crédito à sua inteligência. Os "pensamentos" são para uso dos que pensam..."

"O autor de máximas orienta o leitor pelas diferentes avenidas do pensamento, mas não se lhe impõe à maneira dum cicerone obsidiante, deixa-lhe a alegria de descobrir e sobretudo a de adivinhar. E depois, o aforismo apresenta, para os espíritos altivos e púdicos, essa inestimável vantagem de ser bastante transparente para revelar o nosso segredo aos que nos amam, e suficientemente opaco para o dissimular aos outros. Porque repugna essencialmente ao espírito altivo e púdico dizer tudo: longe de progredir pacientemente, protegendo as costas e antecipando-se a responder a todas as abjecções, o autor de máximas sabe-se e quere-se vulnerável; a marcha descontínua e aparentemente anárquica do seu pensamento fornece aos seus adversários mil ocasiões fáceis de o refutar. Enquanto um trabalho didáctico se nos impõe, de fora, com todo o peso das suas provas e das suas deduções verdadeiras ou falsas, o aforismo só pode dar os seus frutos num clima de liberdade, de confiança e de intimidade: o autor dá constantemente uma prova de confiança ao leitor, e tem necessidade de que o leitor, por sua vez, lha dê sem cessar".

Dar uma prova de confiança ao leitor... Esse é para mim o fulcro do problema. Há uns dez anos, um grande filósofo, a quem me honro de dever muito, tendo notado nos meus primeiros ensaios um certo abuso da elipse e do sub-entendido, escrevia-me paternalmente: "Nunca avalie por excesso a inteligência do leitor". Bem sei que ele tinha razão quanto a uma boa parte da humanidade, mas se só houvesse tais leitores, preferia não escrever. Se o leitor não é capaz de assimilar espontâneamente (isto é, de integrar na sua síntese pessoal) os vários alimentos que se lhe proporcionam, se é preciso mastigar e digerir por ele, mais vale estar calado.

Fonte: "O pão de cada dia" - Editorial Aster - Colecção Éfeso