quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O sentido da história

Aos cristãos que agitam aos nossos olhos o estandarte já gasto do "plano de Deus na história" (que se traduziria por um aperfeiçoamento contínuo do homem e das estruturas da Cidade), é mister pôr esta questão central: Cristo veio para nos elevar acima do tempo ou para melhorar a nossa condição no tempo?

A resposta transluz no Evangelho, onde nunca se tratam problemas estritamente temporais: Cristo veio unicamente para nos trazer a vida eterna. Que, por via de consequência---por acréscimo, como diz na parábola das aves do céu e dos lírios dos campos---esse dom celeste guia e ajuda a nossa marcha nos caminhos da terra, é uma verdade de experiência, porque o homem que busca o absoluto e o infinito, onde existem, evita, no finito e no relativo, o que vai além da medida e que é a origem do seu pecado e da sua desgraça.

Aquele que domina o tempo é quem melhor preenche os estreitos limites que o tempo lhe impõe. O tempo não deixa de ser uma posição movediça, um ciclo fatal e monótono ao qual não se escapa senão por duas faculdades orientadas para o eterno: a inteligência e o amor. O seu movimento rotatório, que faz alternar os contrários, exclui todo o poder indefinido de criação e toda a promessa de libertação---nihil novi sub sole---nada há que seja novo debaixo do sol Os adoradores do progresso, que desconhecem esta fatalidade, assemelham-se a cativos como que enlouquecidos, que se lançam alternativamente contra as paredes da sua prisão e logo após recambiados como uma bola ao seu ponto de partida num movimento sem fim. Os Hindus chamam a esta ilusão "o transvio dos contrários".

O choque de todos os nossos desejos, desde as paixões individuais até às revoluções colectivas, a fecundidade inicial e o malogro final dos nossos esforços temporais confirmam esta lei. Péguy falava já destes "retornos que voltam ao ponto de partida" e dos "progressos mais velhos que o velho hábito".

A única superioridade sobre os nossos avós está apenas nas facilidades que temos de explorar com maior rapidez o território da nossa prisão---privilégio que aparentemente deslumbra e embriaga, mas falaz nos seus resultados, pois que nos dá com maior rapidez a consciência do nosso incurável cativeiro. O homem moderno vangloria-se das mil possibilidades que se lhe oferecem de realizar os seus desejos. Mas ignora se, porventura, a sua realização revela do mesmo passo a sua vaidade?

Quanto maior for a distância entre a sede e a concha da água, por mais tempo gozaremos do viático da ilusão. Quando o homem se arrastava penosamente dum extremo ao outro da sua caverna, e sua ignorância podia confundir a parede e a porta de saída: o finito era tão longe e difícil de atingir, que dava a impressão do infinito. Ao passo que hoje...! A redução de todas as distâncias no tempo e no espaço faz do viático da esperança um comprimido que se engole como uma pílula de farmácia.

Que resta, na alma dum homem de negócios que toma o avião para New-York, daquele arrepio interior dos companheiros de Colombo, singrando para um Ocidente fabuloso?

Enquanto o homem dirige a sua marcha para os bens que vê flutuar nos limites do sonho e do impossível, uma miragem enche de encanto sua carreira e, até mesmo, se atingir o fim almejado, um vislumbre da febre dourada da expectativa dá colorido à posse. Mas, num mundo encurtado e domesticado, em que o efeito segue a promessa como uma sombra e um eco, toda a ilusão se desvanece apenas concebida e o malogro das miragens deixa-nos sós diante dum deserto de vaidade. A vaga de niilismo e desespero que submerge hoje a alma humana, é o reflexo da vaga de optimismo temporal dos adoradores do progresso---e mais uma prova da natureza cíclica do tempo e da identidade dos contrários.

Aqueles que buscam a salvação e a libertação ao nível do tempo hão-de acusar-me de pessimismo.

Responderei que são eles que arrastam os homens ao desespero, associando seus votos a um ídolo infecundo. Sejamos claros. O tempo permanece o que é: um círculo e uma prisão. Mas nós ficamos o que somos: seres capazes de quebrar este círculo e evadir-nos desta prisão. Deixar de crer na virtude intríseca da mudança, não ligar a sua esperança às promessas do futuro, não é desesperar do homem, porque o tempo não constitui a medida interior do homem. A vida temporal tem obstáculos que nos tornam prisioneiros pelo lado inferior de nós mesmos, mas a evasão para o alto é sempre possível. Se procuramos refúgio, pela contemplação e o amor, no círculo infinito da eternidade, poderemos libertar-nos do círculo finito do tempo---a saída está aberta não a uma humanidade vaga, relegada para um futuro quimérico, mas a cada um de nós e à própria hora em que vivemos. Por que falar, pois, de pessimismo? Não há necessidade de correr após o fantasma do que virá a ser, quando nos podemos unir imediatamente à plenitude do que é. Esta plenitude todos nós a procuramos, mas é-nos dada ou recusada consoante a altitude dos nossos votos. O mito do progresso consiste em esperar do futuro uma beatitude, que as condições da existência terrestre tornam impossível, isto é, pedir ao tempo que nos liberte do tempo.

O realismo da fé consiste em nos abrirmos à vida eterna. Ora "a vida eterna está precisamente em que os homens conheçam o único verdadeiro Deus e Aquele que nos foi enviado, Jesus Cristo". E ainda está em buscar primeiro que tudo o reino de Deus e a sua justiça---que não é a justiça humana, cega e manca, mas a reconciliação luminosa do homem com a sua origem, para que se restabeleça o equilíbrio fundamental da criação e, por acréscimo, quanto as nossas enfermidades e os nossos limites o permitem, se encontre a solução dos problemas temporais que obsidiam a nossa época e que permanecem insolúveis ao nível do tempo. Até mesmo os problemas terrestres têm a sua solução no céu: a questão é posta cá na terra, mas a resposta vem do alto. De igual modo, a rota dos navios é através dos mares, mas a luz que os orienta por entre as ondas cai do farol erguido acima das vagas.

Fonte: "O olhar que se esquiva à luz" - Livraria Figueirinhas - Porto, 1957