sábado, 30 de outubro de 2010

Prólogo do livro "O olhar que se esquiva à luz"

Como falar aos homens? perguntava Saint-Exupéry, um pouco antes de entrar no silêncio eterno. É o tormento de todo o homem que escreve, não para acumular palavras nem mesmo para espalhar ideias, mas para repartir com os seus irmãos uma verdade e um amor mais vivos em si do que ele próprio. Onde estão as palavras que atingem o ser na sua origem, ou como encontrar as palavras que levam além das palavras?

E primeiramente, que é o homem? Uma coisa que pensa e que ama e, ao mesmo tempo, que vai morrer e não o ignora. Pouco importa que ele se afadigue a esquecê-lo e procure defender-se de todas as aparências da morte: os olhos da alma não se cansam como os olhos do corpo, como ele não desconhece. A sua única certeza, a única promessa que não falhará é o paradoxo duma vida cuja suprema verdade está na morte. Todos nós havemos de morrer, eu que falo e vós que me escutais---e entre nós é vã toda a palavra que não tem eco nesta última morada da alma, onde reina já a morte imortal. Entre os ruídos do mundo, só tem sentido a voz solitária que sabe despertar no homem o Deus adormecido.

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Não somente o Deus que dorme, mas também o Deus que sonha, o Deus que se procura às apalpadelas entre as sombras que o escondem e as falsas claridades que o deslumbram.

Seja o que for que ele fizer, que se aferre ao passado ou corra para o futuro, que se procure ou se evada, que se abandone ou retraia, na sua virtude como no seu pecado, na sua sabedoria como na sua loucura, o homem tem apenas um fim e uma ambição: escapar às malhas do tempo e da morte, projectar-se para além de si próprio, ser algo mais do que um homem. A sua verdadeira morada é para lá do espaço, a sua pátria reside fora das fronteiras que a limitam. Mas a sua desgraça quer---e aqui jaz a causa desta perversão que nós chamamos erro, pecado ou idolatria---quer, iludido por aparências e procurando o eterno ao nível do efêmero que passa, ele se afaste ainda mais desta unidade perdida, desta perfeição entrevista em sonho.

Seria preciso mostrar aos homens de que realidade divina o seu sonho e o pressentimento e o túmulo. Fazer-lhes sentir que a fome de Deus nutre aquilo que eles julgam ser mais estranho ao divino: as suas diligências quotidianas, as suas paixões terrestres, o seu próprio materialismo, porque a matéria apenas tem valor como signo do espírito. Na realidade, toda a gente procura Deus, porquanto toda ela quer encontrar na terra aquilo que a terra não pode dar-lhes; toda a gente procura Deus, porque toda ela procura o impossível. Se a luz surge, se o despertar se produz, todos os "quiproquós" de sonho se desvanecem e todas as coisas retomam o seu verdadeiro lugar, na claridade restabelecida. Os próprios ídolos deixam de ser ídolos, tornando-se transparentes: o véu atravessado pela luz já não é um véu; a simplicidade do olhar faz desaparecer o dualismo entre o tempo e a eternidade.

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Se o supremo valor do homem está para além do humano, e na aspiração, tácita ou manifesta, para o ser inefável, que um Padre da Igreja grega chama "O Além de tudo", o nosso século não parece indigno do ósculo da eternidade. Jamais, talvez, o homem se houvesse sentido tão pouco à vontade nos seus limites como hoje: como desintegrou os átomos e fez explodir nele todas as dimensões do humano, esvaziou-se de tal maneira do seu equilíbrio natural e das suas seguranças terrestres que não pode já ser retido no pendor do nada senão pelo contrapeso do absoluto. O grande signo do nosso tempo é a revelação da inanidade dos compromissos, das meias medidas, das virtudes utilitárias e ornamentais. O dilema: Deus ou nada, não se apresenta já como um tema de dissertação filosófica ou rasgo oratório; penetrou até a medula da nossa carne e da nossa alma, pôs-se com a urgência de uma manobra de salvamento a bordo de um navio em perigo.

Esta manobra é tão simples que desafia todas as palavras. Basta abrir os olhos até a alma e deixar-se penetrar pela evidência. Eu não trago para aqui nenhuma receita nova, nenhuma fórmula original na arte da salvação: pobre, na realidade, de tudo o que falta ao homem, e rico em potência do bem infinito que Deus oferece a todos, não me exceptuo da miséria comum, nem da comum esperança, e não sinto em mim qualquer privilégio para revelar aos outros o segredo que eles trazem consigo: a minha única ambição é convidar aqueles que me lerem a fazer coincidir o seu olhar com a gota de luz eterna que é o vestígio e o germe de Deus no homem. Porque a morte---o único futuro isento de mentira---nos espera, seguindo a altitude dos nossos votos e esperanças como uma nova ou como um algoz, e de todos os movimentos da nossa alma, nada subsistirá além da nossa participação naquilo que, não tendo origem no tempo, não morrerá com ele. Cronos não devora senão os seus próprios filhos.

Este cuidado do bem nu e transcendente tornou-me, porventura, por vezes, nimiamente severo para com certos valores temporais que correspondem a indiscutíveis necessidades, mas que a idolatria dos homens transforma incessantemente em refúgios contra o infinito. Quero falar não sòmente dos inumeráveis compromissos morais e sociais, mas também de todas as virtudes humanas que não ocultam no fundo delas próprias não sei que amargura de exílio e o germe do poder de se ultrapassarem. E que dizer, então, dos ídolos que pertencem especialmente ao nosso século e que captam a seiva religiosa ainda mais perto das raízes: o conformismo do não conformismo que faz da revolta uma escravidão e da evasão um cárcere, o mito do progresso e do "sentido da história" que afoga a eternidade nas vagas do tempo, o mito do social que é a negação e a máscara da caridade?

Regozijava-me há pouco de ver o homem bastante despojado de si mesmo para só ter recursos em Deus. Mas outras vezes pergunto-me se ainda lhe resta bastante substância humana para que o divino possa enxertar-se nele. A violação generalizada dos ritmos da natureza e da vida, a extinção progressiva das diferenças e hierarquias, o indivíduo transformado em grão de areia e a sociedade em deserto; a sabedoria substituída pela instrução, o pensamento pela ideologia, a informação pela propaganda, a glória pela publicidade, os costumes pelas modas, os princípios por receitas, as raízes por varas; o esquecimento do passado a esterilizar o futuro; a perda do pudor e do sentimento do sagrado; a máquina sobrepondo-se à alma e modelando-a à sua imagem---todos estes fenómenos de erosão espiritual aliados ao orgulho prometeano das nossas conquistas materiais não nos farão correr o risco de sermos conduzidos até este grau de esgotamento nas coisas vitais e de suficiência no artífice, acima do qual a piedade de Deus assiste, impotente, às decadências do homem?

Mistral, num clarão profético, fala algures de empolas que se enchem e de peitos que se esvaziam. A expressão diz tudo. Diante destas multidões humanas arrancadas ao seio maternal da natureza, e que, alimentadas de fumo, perderam até o desejo dos verdadeiros alimentos, volto-me com uma nostalgia angustiante para a saúde biológica, para as virtudes elementares, para as tradições experimentadas---tudo o que representa a vida, mesmo debaixo das suas formas mais inferiores---esta vida que a graça quebra e transforma, mas da qual tem necessidade, como o lavrador precisa da terra que ele atormenta, a fim de lhe confiar a semente. A "degradação vivo em mecânico", de que falava Bergson, vemo-la cumprir-se sob o nosso olhar com uma amplidão e uma rapidez que mais relevam da mecânica do que da vida: ela triunfa na elaboração deste tipo de humanidade anónima, feito de imaginação passiva e inteligência desincarnada, que nós chamamos o homem das multidões---aquelas multidões no seio das quais os indivíduos que não se assemelham a coisa alguma se parecem todos uns com os outros. Cada época produz obras que são o reflexo da sua alma: nós vivemos na nossa o estádio da máquina de pensar. Não seria, para os psicotécnicos e especialistas da "violação das multidões" o ideal protótipo da humanidade futura? Ora, Deus é a vida---e o vivo enxerta-se no vivo e não sobre o mecânico.

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Quando falo do divino e do transcendente, estas palavras evocam, para mim, não uma categoria do pensamento ou uma aspiração da alma, mas um ser tão real como inefável: o Deus cristão, o Deus católico.

Que o facto de eu pertencer à Igreja visível não se manifeste sempre muito claramente nos meus escritos, esta censura, que por vezes me tem sido feita, não é inteiramente injustificada: não se trata em todo o caso de respeito humano nem de tibieza, mas de não sei que pudor na fé que desejaria fazer adivinhar a alma da Igreja antes de desvendar-lhe o corpo. Deus me livre, além disso, de os separar um do outro! Tenho pela armadura social e oficial da Igreja todo o respeito que se deve às coisas necessárias ao suporte das coisas perfeitas. Não reverencio as aparências exteriores que revestem e designam uma tão bela realidade. Mas, enfim, neste corpo místico de Cristo que nenhum de nós pode abraçar na sua extensão, nem penetrar na sua profundeza, é permitido preferir o sangue ao esqueleto e a carne à vestidura. E eu relembro ainda uma vez que preferência não significa exclusão...

Nada em mim tem a pretensão de representar a Igreja. Quando muito, posso desejar servi-la, e o mais indirecta e invisivelmente possível. A minha linguagem não é a do teólogo, nem a do moralista; não é a mim que incumbe traçar os limites do aprisco nem do campo de pastagem do rebanho de Cristo, e os meus votos seriam ouvidos, se, aquém e além do aprisco, algumas ovelhas pudessem encontrar na minha voz um eco logínquo, mas não infiel, do amor e da esperança do Pastor divino.

A Igreja militante tem os seus quadros oficiais e o seu exército regular. Mas possui também os seus voluntários, os quais guerreiam nas fronteiras, e às vezes até mesmo para lá das fronteiras. Não se servem das mesmas armas de que os soldados se servem, nem falam sempre a mesma linguagem que eles falam. Basta que tenham a mesma fé e o mesmo amor. E Deus reconhecerá os seus, com uniforme ou sem uniforme.

A tentação que espera os voluntários é da indisciplina e do individualismo. A que ameaça as tropas regulares é a queda num conformismo, em que o social tem maior parte do que o divino. Mas, quem escolheu o seu caminho, escolhe também os riscos que deverá vencer...

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Seria engraçado que um filósofo da transcendência recusasse ser transcendente. O meu desejo é menos trazer um ensinamento do que suscitar um diálogo. Não sou daqueles "mestres do pensamento" cuja autoridade, repelindo toda a discussão, impõe o seu jugo e os seus limites ao pensamento dos outros. Se eu ambicionasse uma cátedra, seria a que ensina a pensar. E não necessàriamente no sentido em que eu próprio penso. Prefiro uma contradição viva a uma aprovação morta. "Não se tem grande reconhecimento por um mestre, quando se ficou sempre discípulo", dizia Nietzsche, com a suprema humildade do orgulho, aterrado pela verdade inacessível. As ortodoxias privadas inspiram-me tanto temor como piedade: elas traem primeiro, congelando o que deve ser uma nascente, o pensamento a que se agarra a sua fidelidade servil. Mais me interessa ser ultrapassado do que seguido. A verdadeira influência não consiste em modelar por fora o espírito de outrem à nossa imagem, mas em despertar nele o artista latente que esculpirá do interior uma estátua imprevisível ao nosso pensamento e talvez estranha aos nossos interesses.

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Sabe-se, desde Sócrates, que a filosofia é a aprendizagem da morte. Esta perspectiva só parecerá fúnebre àqueles que vêem as coisas ao inverso. Se a morte amadurecesse nas almas como amadurece nos corpos, iríamos para ela como a flor se abre à luz, e a vida deste mundo, londe de ser ensombrada pela sua aproximação, mergulharia já num brilho transfigurador, porque as coisas do tempo são permeáveis à eternidade de Deus, que está simultâneamente para além de tudo e é presente a tudo. Não me cansarei jamais de citar uma das expressões mais salvadoras que têm sido proferidas pelos lábios humanos: a de Santa Catarina de Sena, respondendo a alguém que se queixava de ser esmagado por tarefas temporais: "Somos nós que as tornamos temporais, porque tudo procede da bondade divina". Na verdade, o conflito entre a terra e o céu apenas existe ao nível da nossa cegueira. Não é a luz que falta ao nosso olhar, é o nosso olhar que falta à luz. Felizes os corações puros, porque eles verão a Deus. E vê-lo-ão por toda a parte, pois está em toda a parte. As coisas do tempo apresentam-se-nos primeiramente como uma ilusão e uma prova: dissipada a ilusão, vencida a prova, logo elas nos revelam o seu lado eterno, o seu sentido divino. O mundo encontra na alma dos santos a unidade sagrada da sua origem. Deus reina nesta unidade, segundo a palavra do Evangelho, tanto na terra como no céu, Fora desta redenção, a existência temporal é apenas passatempo absurdo e fastio mortal. Tal é o sentido da frase que conclui e resume este livro: Tudo o que não é eternidade encontrada, é tempo perdido.

30 de março de 1957
Saint-Marcel-d'Ardèche.


Fonte: "O olhar que se esquiva à luz" - Livraria Figueirinhas - Porto, 1957
Tradutor: Pe. Joaquim Tomás
Título original em francês: "Notre regard qui manque a la lumière"