domingo, 20 de junho de 2010

Doença e flagelo

Pesa sobre o homem uma dupla ameaça: a do flagelo (englobo nesta palavra todos os males que desabem sobre nós do exterior: guerra, opressão, fome, epidemias, etc.) e a da doença (chamo assim todos os males de causa interna, saídos da degenerescência física ou moral, desde as afecções crônicas do corpo, até à corrupção dos costumes e das instituições). O "progresso" da humanidade tem, por mal dos nossos pecados, consistido principalmente, até aqui, em jugular o inimigo de fora, com vantagem para o inimigo de dentro. Menos epidemias, mas mais cancros; menos guerras, mas mais revoluções (que são hoje as guerras, senão revoluções?), menos fomes, mas mais estômagos débeis; menos corações despedaçados, mas mais almas exaustas... Este progresso reduz-se, no conjunto a um processo de interiorização do mal. Na Idade Média, mal se concebia a existência de um grande sofrimento, cuja origem fosse puramente interna. O inferno imaginava-se como tortura infligida de fora. E o mesmo pecado era tido como um incidente transitório e não como expressão de uma necessidade interior.

O mal interior evolui de modo infinitamente mais benigno, pelo menos na aparência, do que os flagelos exteriores. O cancro germina mais lentamente do que a peste (leva talvez uma vida inteira a germinar), e o incurável mal-estar que ressuma de todas as vidas moles e fartas, não nos agarra pela garganta com a brutalidade das manápulas de um facínora. Mas a peste e o facínora são males que não fazem parte de nós mesmos. Podem deixar-nos. E, se nos matam, matam-nos de frente, sem nos corromperem. Ao passo que o mal interior persegue-nos até a cova e desnatura-nos, mesmo antes de nos matar.

Contudo, o homem cultiva este mal supremo, cujas causas acarinha, e treme, em face dos flagelos que dele o poderiam libertar. Aqueles que ontem se apavoravam com medo da guerra, e que hoje se aterram, com medo da vida, temem que o flagelo varra deles a doença. Assusta-os, mais do que a morte, uma cura que faça doer. É como se o instinto, que neles habita, dissesse ao flagelo: Nós somos suficientemente fortes para nos destruirmos a nós mesmos, se quisermos,---e mais radicalmente e até mais seguramente do que tu o poderias fazer.---Basta-nos, para isso, mobilizar o que nós cremos ser o prazer, a segurança e o repouso!

Fonte: "A escada de Jacob" - Editorial Aster - Colecção Éfeso