domingo, 21 de fevereiro de 2010

Problema da ingratidão

Um miserável grita por mim: acudo ao seu apelo e ajudo-o o melhor que posso, enquanto outros, à nossa volta, permanecem surdos aos seus rogos. Resultado: o miserável esquecerá os que o repeliram e a mim, que fiz o que podia, mais tarde ou mais cedo, passará a odiar-me. Essa escandalosa mudança é, no entanto, tão lógica! Este desgraçado, desde o meu primeiro favor, agarrou-se-me com toda a sua impossível esperança, com toda a sua necessidade infinita de receber (não é verdade que é próprio de quem nada possui esperar tudo dos outros?) e eu, que tenho a alma cheia já de tantos deveres e afeições, não pude corresponder com toda a minha força de dar. Ocupo toda a sua atenção e ele não ocupa toda a minha piedade: a balança não mantém o equilíbrio. E fatalmente virá um dia em que já o não poderei satisfazer: então, a sua fome mais aguçada do que apaziguada pelos meus primeiros favores, a sua fome incurável de pobre, trocar-se-á em aversão por mim e odiar-me-á com toda a força da sua esperança ludibriada, enquanto que já há muito terá deixado de pensar naqueles que, pela sua dureza inicial, não criaram nele este apelo no vazio.

Essa ingratidão é uma compensação absolutamente normal, de ordem quase física, regida pelas leis da gravidade, e que exige ser-se santo para lhe poder escapar. Simone Weil põe o problema da santidade nestes termos: Como escapar àquilo que em nós se assemelha à gravidade?

Fonte: "O pão de cada dia"- Editorial Aster - Colecção Éfeso