quarta-feira, 4 de maio de 2011

Conhecer a vida

"Vós não conheceis a vida": é a censura corrente que os homens de acção e de experiência dirigem aos homens de estudos e de espiritualidade. E, certamente, há uma certa razão para denunciar o erro dos sistemas de ensino e de educação que repousam sobre uma iniciação puramente teórica e livresca, que não tem em consideração o contacto directo e pessoal com os seres e as coisas. Mas o erro oposto existe também, e acontece que a experiência material mais audaciosa apenas nos dá sobre a verdadeira realidade da vida um saber abstracto e desincarnado.

"Conhecer a vida..." que é que isso significa? Os acontecimentos da vida têm o sentido que nós lhes damos: dependem da nossa interpretação criadora. Desde que as necessidades alimentares ficam satisfeitas, as coisas e os factos não passam de sinais espirituais, de instrumento do nosso pecado ou do nosso amor. A necessidade de comer é um facto. Mas por que é que o sibarita muitas vezes come quando já não tem fome e o asceta recusa a comida mesmo tendo-a? A polaridade sexual é outro facto. Mas nós podemos aceitá-la como um prazer ou repeli-la como uma escravização, desfigurá-la pelo deboche ou transfigurá-la pelo amor. Os factos são materiais plásticos que recebem a sua forma do nosso acolhimento interior, oferecem-se-nos, como os sons se oferecem aos músicos, mas a chave da harmonia está na nossa alma; aos apelos que nos ferem, responderemos por um eco em que vai o acento da nossa própria vida. O que se chama experiência é o reencontro do mundo exterior, que fornece a matéria, com o mundo interior, que cria a forma e o sentido. A massa vem-nos de fora, mas é o fermento, que tiramos de nós próprios, que faz dela um alimento mais ou menos nutritivo --- ou um veneno.

"O odor das flores não sopra contra o vento, mas sopra o perfume da virtude". Este texto hindu exprime admiràvelmente o que no homem há de indeterminado e de criador em relação às forças cósmicas e aos acontecimentos. O espírito não depende da direcção do vento: sopra donde quer. Foi Adão que deu um nome, e, por conseguinte, um sentido, aos seres e às coisas.

Medimos assim a fraqueza e a miopia dos métodos de educação fundados apenas sobre a experiência dos factos. Em psicologia, não há factos virgens, mas sòmente factos fecundados. Daqui a necessidade de vigiar sobre o elemento fecundante, isto é, sobre o espírito e a liberdade, ao menos, tanto como sobre o elemento fecundado. A iniciação, para os antigos, consistia mais num ensino espiritual e doutrinal do que na experiência material da vida. Porque há qualquer coisa mais importante do que "conhecer a vida": é conhecer o sentido da vida. Ora, tal sentido tanto pode sentir-se no meio da solidão mais virgem, como ignorá-lo depois de ter feito todas as experiências possíveis. Se o conhecimento resultante da prática de actos materiais bastasse para tudo, uma prostituta saberia mais sobre o amor que Heloisa ou Júlia de Lespinasse. "Um imbecil que passa a vida ao lado de um sábio não compreende melhor o sentido da sabedoria do que a colher o sabor da sopa", diz um outro adágio oriental. E que te importa provar de todas as bebidas, se a impureza da tua boca lhes desnatura o sabor, ou ver desfilar diante de ti todas as paisagens do universo, se tu não levas nos olhos o brilho que lhes desvenda a beleza? A suficiência vulgar e a ignorância profunda de tantos homens carregados de experiência (penso particularmente em certos grandes viajantes e sedutores) provém de que eles confundem o contacto passivo com um estremecimento que fecunda; se a colher pudesse pensar e falar, a sua "intimidade" permanente com a sopa dar-lhe-ia a ilusão de que a sopa já não tinha segredos para ela! A experiência material é o caminho, o espírito é a lanterna, e não é conhecer a vida tropeçar nas bordas do caminho sem ver mais do que poeira ou lama...

Fonte: "O olhar que se esquiva à luz" - Livraria Figueirinhas - Porto, 1957