domingo, 17 de junho de 2012

EROTISMO CONTRA AMOR

A chamada civilização ocidental encontra-se completamente submersa num nevoeiro de erotismo, tão denso e tão insalubre como o fog londrino nos piores dias de outono.

Quer se trate de jornais, livros, espetáculos ou anúncios, encontra-se por toda a parte a mesma escalada do sexo (embora, na realidade conviesse mais falar de escorregamento), o mesmo desfile de narrações ou imagens eróticas, sempre tão fastidiosas --- dizia Camus --- como a leitura de um manual de bons costumes.

Esta invasão atinge um grau de variedade e de irrealismo que não tem paralelo em momento algum da História. Acode-nos imediatamente ao espírito a frase de Talleyrand: "Todos os exageros são insignificantes". A inflação traz consigo a desvalorização.

Não é em vão que se diz que a estupidez absoluta "desarma". Não se pode reagir senão com o riso. O riso purifica. e disse-se que no último dia a Eterna Sabedoria rirá.

Mas se o erotismo --- pelo que é em si --- não produz em nós mais que irrisão, aparece também como um terrível sinal de alarme no que respeita às realidades humanas, que esgota e desnaturaliza. Ao mesmo tempo que rimos perante a caricatura, choramos perante a forma mutilada.

E aqui, a forma é a sexualidae humana, que, longe de ser --- como nos animais --- uma faculdade quase autônoma e dirigida por uma finalidade invariável (acto sexual, procriação), apenas se exerce em função de uma interpretação e de uma orientação de que participam todos os restantes elementos da personalidade: afectividade, desejo de domínio, sentido estético e religioso, etc. O que eu condeno no erotismo é o facto de solicitar o mais superficial e baixo desses elementos, para desviar a sexualidade dos seus fins biológicos e espirituais, conseguindo degradar o homem completo, tornando-o escravo de um "sex-ídolo" simultâneamente desvitalizado e sem espírito. Em última análise, não se trata de cultivar o apetite carnal mas de prostituir o ideal na carne.

AMOR DOENTIO

O que é o erotismo? O termo, de origem muito recente, serve para designar hoje em dia tudo aquilo que nas palavras, textos e imagens faz referência à atracção dos sexos: frases, livros, canções, pinturas, fotografias, cinema... eróticos. Tudo o que implica complacência, deleitação do espírito nas coisas da carne: o Larousse registra as duas definições seguintes: "amor doentio" e "busca da sensualidade". Acrescentemos que se trata mais de uma sensualidade representada do que de uma sensualidade vivida; mais de uma obsessão do que de uma necessidade; de uma ficção enxertada numa realidade e que, como veremos adiante, tende a desnaturalizá-la e até a sustituir-se a ela.

ÍDOLOS E TABUS

Qual é a causa desta vaga de erotismo no mundo contemporâneo?

Pode pensar-se num fenómeno de rejeição exuberante, como reacção ao excesso de rigorismo das gerações precedentes. O Jansenismo e o Puritanismo, que reprovam como inconfessável, e coisa de que não podia falar-se tudo o que se referia às obras da carne, constituíram feitos inéditos na História. Como um gás demasiado comprimido, esta sexualidade a que se tinha negado o lugar na mente e na expressão, acabou por fazer estalar as barreiras e estendeu-se por toda a parte. E ao tabu sucedeu o ídolo...

Mas tudo o que existia de artificial e malsão no tabu comunicou-se ao ídolo. Assistimos a uma degenerescência  hipertrofiada da sexualidade: o erotismo moderno procede mais da excitação que do vigor, mais do cérebro e dos nervos que da carne e do sangue. E os seus extremos apresentam uma impotência básica para assumir normalmente a realidade sexual. A seexualidade introduz-se em toda a parte, na medidade em que se é incapaz de a exercer no lugar adequado. Invertendo a célebre frase de Pascal, um jovem filósofo canadiano, Jacques Dufresne, escreveu que a sexualidade "tem a circunferência em todas as partes e o centro em parte nenhuma".

A sexualidade gravita em torno de pois polos: o apetite carnal e o amor espiritual. O erotismo actual não tem nada a ver com um nem com o outro.

O EROTISMO, FLOR DE ESTUFA

Uma simples olhadela pela literatura e pelas representações eróticas basta para apreciar quão longe nos encontramos da louçania e da efervescência vitais. Com algumas exceções --- um Brassens, por exemplo, ou um Delteil --- as obras em que se expõem todas as intimidades carnais situam-se nos antípodas da sã galhardia de um Aristófanes ou de um Rabelais. A frialdade alia-se à obsecenidade, é a tranposição do strip-tease em tudo o que representa de malsão e calculado. Penso nalguns romances de inspiração psicanalítica ou existencialista, onde se expõem, num ambiente de conivência os tenebrosos bas-fonds da vida sexual. Quem seria capaz de falar de leveza ou de louçania? O que se desprende dessas folhas sem clorofila é um peso mortal de tédio: o que nos trazem à imaginação são esses fungos de inverno, acetinados, pegajosos que pululam à volta de um tronco velho apodrecido.

"PLAY-BOY" OU AS MONTRAS DO SEXO

O mesmo se passa com as imagens. Nas inúmeras publicações de tipo "Play-Boy" sobressai a habilidade dos "escaparatistas" do sexo. Corpos femininos generosamente desvestidos, mas adornados com um certo véu, de modo que --- por meio de uma sábia distribuição de exibição e mistério --- a subtil arte do "deshabillé" proporciona o aspecto picante do nu...; e tudo isso para provocar uma excitação fictícia que tem mais de prurido que de desejo.

Seria necessário analisar a importância desmedida que a imagem ganhou na vida psíquica --- consciênte e, sobretudo, inconsciente --- do homem contemporâneo. Não me refiro às imagens surgidas da fantasia de cada indivíduo, mas sim às imagens fabricadas em série por técnicos da informação e da propaganda. Essas imagens são, para muitos homens, como que o primeiro alimento que recebem da realidade, como que o ponto de vista a partir do qual apreciam essa realidade. Sente-se, julga-se, tem-se a atracção ou repulsa através de uma imagem. Não mais esquecerei a reflexão que fez um  modesto cidadão em Chamonix, ao contemplar o Monte Branco pela primeira vez: "Ah... Já vi isto na televisão".

UMA CIVILIZAÇÃO ARTIFICIAL

Se, como diz Platão no mito da Caverna, o mundo sensível não é mais do que um tecido de aparências, podemos dizer que avançamos um passo em direcção à realidade, e que vivemos entre sombras "ao quadrado" e reproduções de aparências. Em todos os campos, o homem moderno se converte em "voyeur" (emprego conscientemente esse termo, tirado do vocabulário erótico), na medida em que se alimenta de espectáculos --- raramente directos e quase sempre retransmitidos --- de  factos em que não pode participar efectivamente quer devido ao afastamento quer devido às suas possibilidades. Um "voyeur" da política, do desporto, da guerra, --- e até da natureza --- : estou a pensar nos inúmeros turistas para os quais a fotografia que podem fazer tem mais importância que a paisagem que podem contemplar. E não apenas as idéias (se se pode empregar este termo), mas também as sensações mais elementares, que são dirigidas e falsificadas pela imagem. Poder-se-ia falar do papel que desempenham a apresentação e a publicidade (flamantes etiquetas nas garrafas, "estrelas" nos restaurantes --- que símbolo para esta prostituição do astro na boca! ---) em matéria gastronómica. Sapiunt alieno ex ore: "só saboreiam pelo boca do vizinho", dizia o velho Lucrécio. Estamos condicionados pela imagem, inclusivamente perante o conteúdo do nosso prato ou do nosso corpo.

Esta intoxicação atinge o ponto culminante no erotismo. Voltamos a encontrar o clássico duo exibicionista --- "voyeur", dilatado e multiplicado até ao infinito, por meio do papel impresso e das imagens.

CONFUSÃO DE VALORES

Em que consiste o "voyeurisme"? Sabemos todos que a beleza física é ao mesmo tempo objecto de desejo e de contemplação. O desejo tende, naturalmente, para a posse, o que leva consigo a ampla utilização do sentido do tacto. Ao contrário, a contemplação refere-se apenas ao sentido da vista (o mais nobre, o mais parecido com o espírito, o Eros der Ferne, de Klages). Simone Weil define beleza como "um fruto que se olha sem estender a mão".

O "voyeurisme" procede da confusão destes dois valores. A vista converte-se em fornecedora do desejo: prostituiu-se e, em última análise, identifica-se com o tacto: não só se observa estendendo-se a mão, como o próprio olhar substitui a mão. Não há nada mais expressivo que o ditado popular "comer com os olhos". Neste ponto é que aparece a diferença entre o nu estético e o nu erótico: o primeiro é evocação da beleza, o segundo é provocação do desejo. De um desejo que quase sempre se consome no próprio olhar.

UMA DUPLA FRUSTRAÇÃO

Esta combinação bastarda desemboca numa dupla frustração: a que diz respeito ao aspecto contemplativo, visto que o olhar, ofuscado pelas emanações do desejo, não pode atingir o belo na sua pureza, e no que diz respeito ao aspecto sensual também, visto que o homem fica obcecado, até mesmo no exercício concreto da sexualidade, por uma nebulosa de imagens inacessíveis que se interpõem entre o seu desejo e o objecto possuído. A civilização da imagem democartriza o suplício de Tântalo. Quem está demasiado habituado a "comer com os olhos" perde ao mesmo tempo a pureza do olhar e o gozo da posse.É um facto provado que o erotismo e a insatisfação sexual andam juntos. Um psicólogo americano falava-me  recentemente dos homens impotentes e das mulheres "frias e desenfreadas".

Mas, como se explica o prodigioso êxito do erotismo? O sexo comercializado vende-se às mil maravilhas. Como é que se encontram tantos compradores? ...

Não basta invocar a potência bio-psicológica do apetite sexual, já que o erotismo se refere ao corpo apenas indirectamente e não traz nada ao espírito. É no clima interior e exterior em que o homem se encontra imerso que devemos buscar as razões deste êxito.

UMA CIVILIZAÇÃO DE "MIRONES"

Em primeiro lugar corresponde ao carácter artificial da nossa civilização. Em todos os ramos da nossa atividade (alimentação, trabalho, distração, deslocações, etc.), cada vez se multiplicam mais os "écrans" entre o homem e a  Natureza. O erotismo partilha deste movimento: a "boneca" descarnada do cinema ou o cartaz publicitário são um prolongamento de laranja envolvida em celofane, do vinho químico e da diversão dirigida. Existe também um parentesco com as drogas, cujo consumo não deixa de aumentar (as doenças terapêuticas estão na ordem do dia das preocupações médicas), desempenham, em relação à sexualidade normal, o papel de excitante e de sedante, visto que, por um lado, incentivam a "liberdade de costumes" e, por outro, (é o grande alibi invocado pelos "pornocratas"), acalmam a insatisfação sexual, desviando-a pelos caminhos aparentementes inofensivos do sonho.

Adapta-se também à atmosfera de facilidade que nos rodeia. O exercício normal da sexualidade implica sempre um mínimo de obstáculos e de responsabilidades, ao passo que a letra impressa e a imagem poder ser absorvidos sem esforço e sem continência. E toda a gente é convidada para este festim ilusório: "Tudo para todos", na medida em que tudo se reduz a nada. Uma vez que não tem duração real, a sexualidade imaginária não tem limites: tudo é possível, tudo é permitido no reino do sonho e da ficção. No mundo das imagens toda a gente é rei. Qualquer zé-ninguém encontra ao alcance das mãos --- melhor dito, dos olhos ---, material suficiente para construir, sonhando um harém tão opulento como o de Salomão. Consegue também a sua parte o instinto igualitário que domina a nossa época.

DEGRADAÇÃO DO INSTINTO RELIGIOSO

Mas há pior. Trata-se do desvio e da degradação do instinto religioso, do sentido do mistério e do sagrado, que desapareceram pràticamente deste nosso mundo utilitário. De facto, podemos falar de uma transcendência da sexualidade, a respeito do indivíduo: por isso existem afinidades entre o amor humano e o amor divino, tão longamente recordadas por tantos escritores místicos. Os amantes sentem vibrar uma promessa misteriosa na atracção que os inclina para o ser desconhecido e complementar: o seu amor baseia-se antes de mais na esperança de uma revelação. Os que são incapazes de receber esta revelação através do amor, procuram-na no erotismo. É a única saída para o desconhecido que resta a tantos dos nossos contemporâneos, cuja vida condicionada e sem cor se desenvolve sem aventuras e sem imprevistos à face da terra e sem esperança do céu. O erotismo dá-lhes a ilusão de que ultrapassam a sua mediocridade e dos seus limites. "O infinito à disposição dos cães fraldisqueiros", dizia Céline...

De outro modo torna-se impossível compreender esta magia do erotismo e a atracção que exercem todos os falsos mistérios, pululando em torno de um verdadeiro mistério esquecido e profanado. As "revelações" do erotismo referem-se ao corpo feminino e aos gestos --- normais ou aberrantes --- do amor carnal. Como se houvesse algum ineditismo em tudo isso! A literatura grega e os documentos da vida privada dos doze Césares esgotaram já o assunto. Onde encontrar, no meio de tantas antiguidades, o menor sinal de novidade? A "escalada do nu" é assunto de todos os tempos: como se se tratasse de um monte inacessível cujo cimo se perdesse na "nuvem do desconhecido"!

Mas --- di-lo-emos de novo ---, trata-se de um fenómeno sobre o qual a lógica e até a evidência não têm qualquer poder. Baudelaire via nele o indício do "animal religioso que se engana de ídolo". O erotismo é como uma janela falsa pintada na  parede, através da qual o mal-amante e o mal-amado tentam em vão fugir ao seu isolamento e ao seu tédio. E esta religião do sexo tem os seus deuses, os seus mistérios, os seus mediuns (os "monstros sagrados"), com a aviltante particularidade de qe o que não tem nome substitui o indizível.

UMA "RELIGIÃO" QUE SE CONSOME A SI MESMA

Falo já no passado, porque a religião do sexo começa a apresentar graves indícios de desgaste. Consome-se à medida que consegue liquidar o velho capital de proibições, de inibições e pseudo-mistérios amontoados pelas gerações precedentes, já que o seu prestígio provém disso mesmo. Mas além do pecado, o mesmo da ilusão, chega a insignificância do sexo. A miragem, ao desvanecer-se, deixa ao nu a imensidade estéril do deserto. O sexo entra assim no ciclo economia de consumo. A mulher eterna e a mulher fatal --- Beatriz e Circe --- dissipam-se simultâneamente. Apenas resta um passatempo, uma utilidade, um objecto de entretenimento. Presenciei recentemente, num lugar público, uma conversa entre dois  jovens varões. Falavam, alternando, de automóveis e de mulheres. O tom mal variava (em ambos os casos se tratava de  elegância de linhas, de "performances" técnicas). Embora houvesse um pouco mais de recolhimento ao falarem de carros. Na verdade, são mais caros e fazem correr mais riscos...

Os crescentes sobrelanços nos leilões (quem dá mais?) do erotismo aceleram esta queda. "Há que sacudir, seja por que preço for, a indiferença dos homens", li sob a caneta de um experimentado empresário de espectáculos licenciosos. Desconhecia que "empantorrar" de comida fosse um remédio para a falta de apetite...

Tal é o declive da idolatria. A exaltação do sexo leva directamente à desvalorização e ao desprezo pelo sexo. Não a esse desprezo polémico, de que os velhos ascetas se serviam como se fosse uma cura contra tentações demasiado fortes, mas ao desprezo indiferente dos "satisfeitos". O altar para os ídolos não é mais que a antecâmera do caixote do lixo e da cloaca.

O AMOR FRENTE AO EROTISMO

A conclusão depreende-se por contraste. O problema da saúde e do desenvolvimento sexual não se põem ao nível do sexo, mas ao nível do homem, quer dizer, da orientação que ele dá ao seu destino, e na qual o sexo não é mais do que um elemento. E a solução encontra-se no amor. Lembro-me da frase que Bismark disse à sua jovem esposa que se julgava ameaçada pela infidelidade: "Serias capaz de esquecer que me casei para te amar?" Este para implica muito mais liberdade que qualquer porque; sela, por uma exigência invariável do espírito, a promessa nascida da emoção fugida dos sentidos; traduz a "ardente paciência" do escultor que obtém uma estátua do material indeterminado que a imaginação e a carne proporcionam. O amor do par humano domestica a sexualidade: enxerta um laço singular e irredutível sobre esta força cega e anónima. O erotismo imita o anonimato da Natureza (há nada mais impessoal que o seu arsenal de fórmulas e de imagens?), desnaturalizando-o por meio dos artifícios do espírito.

Não há nada sagrado sem sacrifício, nem plenitude sem ascese. O amor dá sentido e finalidade ao sexo e ao mesmo tempo, impõe-lhe um limite. É impossível ir longe errando em todas as direcções: o caminho estreito é o único que conduz ao país sem fronteiras. O erotismo actua ao contrário: suprime aparentemente os limites da sexualidade e priva-a de sentido e de fim. É um beco sem saída disfarçado de terra prometida, onde os estropiados da sexualidade e os subdesenvolvidos do amor procuram uma evasão, encontrando ainda maior cativeiro.

Fonte: "Rumo - Revista de problemas actuais", Número 150, Agosto de 1969.