terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Do nada ao infinito

"A rosa tem necessidade do esterco, mas o esterco pode muito bem prescindir da rosa" (L'heure éblouissante).

Sempre esta dependência imediata do mais alto em relação ao mais baixo e esta auto-suficiência do inferior. O poeta e o santo têm necessidade de pão, mas o padeiro pode prescindir de poesia e de santidade.

Todos os bens do espírito, todas as riquezas da alma padecem desta servidão humilhante. Não interessa investigar, por exemplo, a razão do servilismo dos Virgílios perante os Augustos, e de tantos padres em face dos poderes temporais.

Não há a considerar que os bens espirituais, pelo facto de não corresponderem, como os bens materiais, a uma necessidade imediata e universal, são independentes de qualquer critério objectivo de estimação e não possuem outro valor além do que cada um lhes atribui, no segredo incomunicável da alma. Diz-se vulgarmente que "não tem preço" bens, como a beleza, o amor ou a fé. Isto pode significar que valem tudo---e também que nada valem: além de todas as cifras, ou zero.

Mistério e mistificação têm a mesma etimologia: a noite faz sobressair as estrelas e germinar os fantasmas. Para aquele que não tem necessidade da luz solar na "sua passagem" pela terra, as próprias estrelas são fantasmas!

O esterco, o pão e a lã terão sempre o seu preço representado por uma cifra, mas o ideal viverá sempre paredes-meias com a ilusão, o heroísmo com o embuste; e os valores que o amante, o artista e o santo trouxeram ao mundo, oscilarão sem fim, consoante o nosso acolhimento interior, do nada ao absoluto.

Fonte: "O olhar que se esquiva à luz" - Livraria Figueirinhas - Porto, 1957