Eu penso naquele homem que uma esposa egoísta e tirânica humilha constantemente em público. A reacção é unânime por parte daqueles que com ele convivem. "Eu não suportaria isto" --- exclama toda a gente. Esta afirmação é tanto mais peremptória quanto cada um se coloca de repente e sem transição, com o seu estado de alma e seus hábitos, na situação daquele infeliz. O que ninguém vê é o declive insensível, por onde este homem, porventura tão independente e altivo outrora, desceu a tamanha degradação. A mulher que hoje o avilta, soubre primeiramente fazer-se amar; ela só descobria então o lado melhor de si mesma; os seus defeitos revelaram-se pouco a pouco, e nenhuma das suas exigências ou deveres constituia razão para transformar um amante dócil em domador brutal. Eis porque a queda é fatal quando o declive é progressivo.
Fonte: "O olhar que se esquiva à luz" - Livraria Figueirinhas - Porto, 1957