sábado, 6 de novembro de 2010

Um convidado: Rafael Gambra

Resenha do livro "El silencio de Dios" - Rafael Gambra, Editorial Prensa Española, Madrid, 1968. Prólogo de Gustave Thibon.

Porque Deus se cala

Deixemos falar o próprio autor. Numa entrevista dada a propósito deste livro e publicada na revista Roca Viva, assim justifica Rafael Gambra o título do mesmo: "O título desse meu último livro faz referência ao silêncio que Cristo manteve diante de seus acusadores e diante dos que em sua vida humana lhe falaram para tentá-lo. Alude também ao silêncio com que Deus responde aos mais duros transes da vida espiritual humana, e a como o homem deve saber escutar e interpretar esse silêncio na profundidade da fé. Refere-se, enfim, à duríssima prova que para a sobrevivência da fé e da Cristandade está supondo isso que se chame hoje "experiência pós-conciliar'', à angústia daqueles que crêem hoje perder a fé ou a esperança, enquanto Deus, uma vez mais, responde com o silêncio da sua dor''.

Mostra-nos o livro como nascem as civilizações históricas, mediante uma re-ligação transcendente, isto é, sobre bases sacralizadas, e como perecem por uma dissolução interior, decorrente de lenta erosão provocada pelo racionalismo, negador daquelas bases. Neste sentido, toma como ponto de partida o duplo conceito de engagement e apprivoisement, de Saint-Exupéry, para fazer o processo, à luz dessas noções, da civilização moderna tecnocratizada e paulatinamente desumanizada. Desligado de suas bases transcendentes, o homem acaba por se tornar também desligado dos "compromissos'' que o fazem participar da vida social no seu sentido mais profundo---o comunitário---e deixa de "domesticar'' os seres dos reinos inferiores que o cercam, tornando-se um estrangeiro no seu próprio mundo. Daí o fenômeno da massificação e as concepções mecanicistas do Estado de direito do liberalismo e do totalitarismo nivelador.

Na visão realista de Aristóteles, indivíduo e sociedade são "aspectos de um só ser: o homem concreto, que é ao mesmo tempo individual e social (natureza individual com radical tendência à sociabilidade), como demonstra o fato de que nunca se conheceram homens sem viver em sociedade, nem sociedade alguma que absorva a individualidade como nos grupos de animais gregários (formigueiros, enxames)''. O abstracionismo racionalista gerou primeiro a idéia do homem fora da sociedade, de Rousseau, inspirando o constitucionalismo liberal, e depois a concepção da sociedade absorvendo os homens, característica do Estado totalitário. Tanto para o liberalismo quanto para o socialismo, a sociedade passa a ser algo de extrínseco para o homem, sendo que no caso do socialismo o Estado a constrói como "um habitáculo técnico forjado mediante a organização e a adaptação dirigidas". A organização do Estado liberal cifra-se a uma técnica de convivência das liberdades, e a do Estado totalitário consiste no planejamento dos serviços e dos seguros abrangendo tôda a via humana.

"Em face de tais concepções de fundo racionalista"---escreve Gambra--- "a autêntica reivindicação humana se expressaria num impulso que, segundo seus diversos aspectos, poderíamos chamar corporativismo, institucionalismo ou comunitarismo histórico. A ordem social não se cifraria assim em criar ou manter um poder racional e neutro que vele só pela liberdade dos indivíduos ou que os proveja de meios e seguros. Mas, pelo contrário, consistiria em recuperar mediante o compromisso e a domesticação o universo existencial de grupos e de instituições capazes de conferir sentido histórico, cordial, à vida coletiva dos homens, e ao mesmo tempo defendê-la das supercriações do Estado racionalista planificador. Assim, pôde escrever Camus num de seus últimos livros: "A verdadeira libertação do homem se apoiou sempre nas realidades mais concretas: a família, a profissão, o município, que fazem transparecer em seus limites o ser, o coração vivo das coisas e dos homens". Tal, enfim, a idéia de Saint-Exupéry, que concebe a cidade como o navio ou a mansão dos homens, "comunidade de laços, de recordações, de esperanças, onde cada passo e cada tempo tem sentido".

"Compromisso, domesticação (apprivoisement) e corporativismo histórico vêm a ser assim os correlatos dialéticos do que no século racional foram o individualismo, a atitude estética e o liberalismo".

São sempre estas as idéias que dirigem o fio das reflexões contida no presente volume: "Na entrega (compromisso) e no amor, o homem cria sua própria personalidade e seu mundo próprio. Na sua sêde ou seu fervor, e na domesticação de um mundo valioso e sagrado para êle, está o verdadeiro homem e o sentido de seus dias".

Belas páginas sôbre a "aceleração da história"---tão bem estudada por Daniel Halévy e por Marcel de Corte---e um capítulo impressionante sôbre "a jogralizaçao da fé", comentado estas palavras de João XXIII: "Não é culpado sòmente quem de modo deliberado desfigura a verdade, mas igualmente quem, para estar "em dia", a atraiçôa com uma atitude ambígua".

Em seu prólogo, Gustave Thibon assim se expressa: "Num século em que reina o conformismo do absurdo e da desordem, em que o ídolo da revolução permanente se converteu em centro de atração para os rebanhos de escravos teledirigidos, nada há de mais nôvo e mais insólito do que pregar o retôrno às fontes e defender a natureza e a tradição".

Essa pregação tem sido uma constante na vida de Rafael Gambra. Em El silencio de Dios êle a retoma, em meio à amargura da hora presente, procurando sobrepôr-se ao derrotismo e "esperar contra tôda a esperança", segundo o conselho do Apóstolo, dando um brado veemente entre os "arautos e forjadores de uma futura reconciliação do homem com a Cidade; uma Cidade renovada cujos fundamentos re-ligados sejam aceitos na humildade, no amor, e nunca mais no orgulho racionalista dos "desmitificadores" da fé".

Clama, ne cesses... Êste livro---diz ainda Thibon---é "um grito de alarma profético". A nós que não queremos fugir aos "compromissos" e ao apprivoisement, que queremos preservar a natureza e salvar os valores da tradição, cumpre-nos gritar até que a nossa voz se imponha e faça calar o linguajar bárbaro dos slogans condicionadores do pensamento teleguiado.

E um dia Deus romperá o seu silêncio.

J.P.

Fonte: Revista "Hora Presente" - Ano I - Janeiro/Fevereiro 1969 - Número 3